Sectarismo e vanguardismo – Debatendo um problema na esquerda

FARJ – Publicado em Libera 163 (Julho a outubro de 2014)

O sectarismo é a intolerância com as posições, opiniões, ideologias ou práticas diferentes das suas ou de seu movimento, organização, grupo etc. Vem acompanhada da arrogância, vaidade e oportunismo, colocados acima da luta pela transformação social. Assim, uma prática sectária vai pautar a política pela diferença, afirmando-se pela negação e denuncismo do outro, buscando o conflito em vez do consenso coletivo e do debate fraterno.

Quando se manifesta entre os setores da esquerda, o sectarismo é ainda mais danoso, pois muitas vezes a luta conjunta contra os inimigos de classe é prejudicada por uma visão de mundo inflexível, fanática e pouco atrativa que acaba mais por espantar o povo do que atraí-lo à causa revolucionária. O sectário preocupa-se mais com o que outros grupos políticos estão fazendo do que com os inimigos de classe dos trabalhadores.

As diferenças políticas, ideológicas e estratégicas de fato existem na esquerda, mas nenhum movimento social ou ideologia avançará sozinha no processo de transformação social. Faz parte da luta saber construir alianças, composições e articulações, com ética e sem que seja necessário deixar de lado os princípios e o programa estratégico, mas buscando o consenso coletivo pelos pontos e demandas que se tem em comum e que ajudem a fortalecer o povo e a alcançar os objetivos revolucionários. Uma prática política ética que respeite as diferenças políticas e procure sempre o fortalecimento da classe trabalhadora é o que diferencia uma proposta libertadora de um processo autoritário; uma meta democrática de um método impositivo. Práticas informais de articulação e grupos mal estruturados também prejudicam o caminho para o poder popular. Podem reproduzir por outras vias o vanguardismo, criando “lideranças ocultas” e desestimulando espaços de construção coletiva.

É preciso ter atenção, pois as relações de opressão também podem estar encarnadas na militância e essa prática deve ser combatida. Deve-se evitar todo doutrinamento, enfiando na cabeça do povo sistemas de ideias ou esquemas de ação já montados que não dialogam com sua realidade. O processo de construção do poder popular não é a doutrinação. Nem formas autoritárias de se fazer política que supõem que uma “vanguarda iluminada” saiba, fale e ensine, enquanto uma outra, o povo, ignore, escute, aprenda e obedeça.

Não são apenas belos discursos que convencerão o povo de sua força e capacidade de luta. Será sua participação concreta e efetiva na organização dos trabalhos de base, de uma greve, manifestação de rua, mutirão etc, em práticas coletivas que vão gerar acúmulos e poder popular. Tampouco é com uma bela retórica que iremos dar cabo das demandas populares, ao contrário, é por intermédio da participação política direta, com o povo organizado deliberando sobre seu cotidiano; no exercício prático com suporte de uma teoria voltada para a realidade e nutrida por esta. Trata-se assim de promover um avanço com o povo sem “idealizações” ou “ideologizações”, ou simplesmente ficar soltando “programas máximos” de maneira a não estabelecer um diálogo com o cotidiano das pessoas. Mas sim traçar objetivos, construir um programa mínimo e planos de ação proporcionais às exigências da realidade e da prática.

Pois, quando há uma vontade de acelerar artificialmente este processo de organização, mesmo em nome das causas mais “revolucionárias”, cria-se um descompasso perigoso que leva a formas estéreis de radicalismo. É querer mais do que o povo e “dar o passo maior que a perna”. É projetar um ponto de vista ideológico sobre uma realidade, de cima para baixo, enxergando apenas o que se gostaria de ver e forçando o povo a fazer aquilo que se acha que ele deveria fazer. E muitas vezes isso vem acompanhado da exaltação de um “martírio militante” ou de uma “autoridade teórica revolucionária”, promovendo determinadas vanguardas políticas.

Outra prática sectária é fazer uma ação descolada da realidade ou que não foi construída coletivamente e acusar de “reformistas”, ou algo semelhante, os que dela não participaram. Ao fim, a ação visa fortalecer as vanguardas políticas e não a luta popular. Essa prática autoritária de forçar uma “radicalização” ou impor uma pauta externa que não foi construída coletivamente pode ser contraproducente e resultar em recuo. E o que parece “revolucionário” tem um efeito reacionário pois não tem sensibilidade com o povo e não quer caminhar junto com ele.

Contribui para isso a arrogância de não se analisar corretamente as possibilidades da conjuntura e as condições concretas da luta. Querer dogmaticamente “empurrar” o povo sempre para uma correlação de forças desigual é agir de forma irresponsável que causa prejuízos sempre para os setores menos privilegiados. Forçar o passo só leva a iniciativas sectárias e à divisão no meio das massas. Uma ação é revolucionária não por sua “estética radical”, mas pelos objetivos que busca e pelo método com que foi construída e encaminhada. Querer que, de uma hora para outra, haja comprometimento imediato do povo em um processo político é colocar o trabalho de base a perder. “É melhor dar um passo com mil do que mil passos com um”.

Todos os verdadeiros processos de poder popular começam com modéstia. Pois a luta dos de baixo cresce a partir dos pequenos problemas sentidos e nas possibilidades de solução, onde toda ação deve ser assumida pelo povo enquanto sujeito ativo. Assim, o lugar das organizações políticas não é atrás nem à frente, mas como são formadas pelo povo, estar em seu meio, para estimular, propor políticas e organicidade e colocar combustível na luta. É necessária uma grande sensibilidade para acompanhar e respeitar a dinâmica viva da ação popular no momento em que ela se processa no dia a dia, numa manifestação ou numa mobilização, por exemplo.

Vontade de lutar para a transformação social sim! Mas uma determinada concepção de trabalho e de prática política cotidiana são o diferencial que vão determinar o caráter do novo mundo que se busca construir. Existem outros métodos que ajudam a acelerar efetivamente e de maneira consequente essa caminhada do povo, como a avaliação da conjuntura, a promoção da articulação, o avanço na organização interna e contato com outros grupos e experiências, o estímulo à (auto)formação política, e a criação de um ambiente social e político ético e favorável a isso, com participação direta e respeito ao povo. Métodos e práticas dotados de princípios populares como a ação direta, autogestão, ética, apoio mútuo e classismo. Valores que devem estar presentes no agora para a construção do poder popular e da transformação social.

Retirado de: https://anarquismorj.wordpress.com/2015/01/17/sectarismo-e-vanguardismo-debatendo-um-problema-na-esquerda/

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Coletivo Anarquista Luta de Classe

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Kurdistan America Latina

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

UCL - Union communiste libertaire

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Black Rose/Rosa Negra Anarchist Federation

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Federación Anarquista de Rosario

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Coordenação Anarquista Brasileira

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Federação Anarquista Cabana – FACa

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

MPA Brasil

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Rádio Gralha | 106,1 MHz | Curitiba

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

FTA - Frente Terra e Autonomia

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Mulheres Resistem

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Resistência Popular MT

Lutar, criar, poder popular!

Resistência Popular - Alagoas

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Tendência Estudantil da Resistência Popular

Organização parte da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

%d blogueiros gostam disto: