Felipe Corrêa e Rafael V. da Silva [1]
Apesar das obras completas de Bakunin terem sido publicadas recentemente em francês – na edição de 2000 do IIHS de Amsterdã, depois de tentativas importantes de compilar parte significativa de sua obra –, seus escritos sobre as chamadas “Fraternidade”, de 1864, e “Aliança”, de 1868, para utilizar a terminologia proposta por Max Nettlau, são pouquíssimo conhecidos. A estratégia de massas de Bakunin vem sendo melhor discutida, em textos relevantes como, por exemplo, Bakunin: fundador do sindicalismo revolucionário, de Gastón Leval [2] e vários outros de René Berthier. [3]
No entanto, sua teoria da organização política, amplamente abordada em documentos escritos com o intuito de fundamentar – em termos de princípios, programa, estratégia e organicidade – suas propostas políticoorganizativas, é pouco ou quase nada discutida. Parece haver, em especial entre os anarquistas franceses, certo constrangimento desses escritos, como se constituíssem parte de uma herança autoritária, talvez de inspiração blanquista e jacobina, que permaneceu no pensamento do autor e que não deveria ser trazida a tona.[4] Consideramos que as posições de Bakunin sobre a organização política anarquista, de 1868 em diante, podem ser conciliadas plenamente com sua estratégia de massas, proposta para a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), e, assim, ser considerada parte relevante de seu anarquismo. Tais posições parecem ter força, ainda hoje, para subsidiar reflexões frutíferas acerca do modelo organizativo mais adequado para uma intervenção anarquista na realidade.
Bakunin sustentou que a Aliança da Democracia Socialista (ADS) deveria ter um duplo objetivo; por um lado, estimular o crescimento e o fortalecimento da AIT; [5] por outro, aglutinar em torno de princípios, de um programa e de uma estratégia comum, aqueles que tivessem afinidades político-ideológicas com o anarquismo – ou, como em geral se chamava à época, do socialismo ou coletivismo revolucionário. [6] Em suma, criar/fortalecer uma organização política e um movimento de massas, o dualismo organizacional:
Eles [os militantes da ADS] formarão a alma inspiradora e vivificante desse imenso corpo a que chamamos Associação Internacional dos Trabalhadores […]; em seguida, se ocuparão das questões que são impossíveis de serem tratadas publicamente – eles formarão a ponte necessária entre a propaganda das teorias socialistas e a prática revolucionária. [7]
Para Bakunin, a ADS não precisaria ter uma quantidade muito grande de militantes: “o número desses indivíduos não deve, pois, ser imenso”; ela deveria constituir uma organização política, pública e secreta, de minoria ativa, com responsabilidade coletiva entre os integrantes, que reunisse “os membros mais seguros, os mais devotados, os mais inteligentes e os mais enérgicos, em uma palavra, os mais íntimos”, nucleados em diversos países, com condições influenciar determinantemente as massas trabalhadoras.[8] Essa organização deveria ter por base comum um regulamento interno e um programa estratégico, os quais estabeleceriam, respectivamente, seu funcionamento orgânico, suas bases político-ideológicas e programático-estratégicas, forjando um eixo comum para a atuação anarquista.
Poderia tornar-se membro da organização somente “aquele que tiver francamente aceitado todo o programa com todas suas consequências teóricas e práticas e que, junto à inteligência, à energia, à honestidade e à discrição, tenham ainda a paixão revolucionária”.[9] Internamente, a organização política bakuniniana não possui hierarquia entre os membros e as decisões são tomadas de baixo para cima, em geral por maioria (variando do consenso à maioria simples, a depender da relevância da questão), e com todos os membros acatando as decisões tomadas coletivamente. Isso significa aplicar o federalismo – defendido como forma de organização social, que deve descentralizar o poder e criar “uma organização revolucionária de baixo para cima e da circunferência ao centro” – nas instâncias internas da organização anarquista. Externamente, a ADS não deve exercer relação de dominação e/ou hierarquia sobre a AIT, mas a complementar; o inverso também seria verdadeiro. Juntas, essas duas instâncias organizativas se complementam e potencializam o projeto revolucionário dos trabalhadores, sem a submissão de qualquer uma das partes.
A Aliança é o complemento necessário da Internacional… – Mas a Internacional e a Aliança, tendendo para o mesmo objetivo final, perseguem ao mesmo tempo objetivos diferentes. Uma tem por missão reunir as massas operárias, os milhões de trabalhadores, com suas diferenças de profissões e países, através das fronteiras de todos os Estados, em um só corpo imenso e compacto; a outra, a Aliança, tem por missão dar às massas uma direção realmente revolucionária. Os programas de uma e de outra, sem serem de modo algum opostos, são diferentes pelo próprio grau do seu desenvolvimento respectivo. O da Internacional, se tomado a sério, contém em germe, mas somente em germe, todo o programa da Aliança. O programa da Aliança é a explicação última do [programa] da Internacional.[10]
O dualismo organizacional bakuniniano caracteriza-se pela união dessas duas organizações – uma política, de minorias (quadros); outra social, de maiorias (massas) – e sua articulação horizontal e permanente potencializaria a força dos trabalhadores e aumentaria as chances do processo de transformação social com fins anarquistas.
Dentro do movimento de massas, a organização política dá mais eficácia aos anarquistas nas disputa de posições e na construção de um projeto revolucionário. Ela contrapõe, organizadamente e em favor de seu programa, forças que agem em sentido distinto e que buscam: elevar à condição de princípio uma das diferentes posições político-ideológicas e/ou religiosas, minimizar seu caráter eminentemente classista, fortalecer as posições reformistas (que veem as reformas como um fim) e a perda de combatividade do movimento, estabelecer hierarquias internas e/ou relações de dominação, direcionar a força dos trabalhadores para as eleições e/ou para estratégias de mudança que envolvam a tomada do Estado, atrelar o movimento a partidos, Estados ou outros organismos que retiram, neste processo, o protagonismo das classes oprimidas e de suas instituições.
[1] Este texto é um excerto (com novo título) extraído da cartilha de formação “BAKUNIN, MALATESTA E O DEBATE DA PLATAFORMA A QUESTÃO DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA ANARQUISTA”. O leitor pode ler o artigo completo no site do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).
[2] LEVAL, Gaston. Bakunin, Fundador do Sindicalismo Revolucionário. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2007
[3] Cf., por exemplo: BERTHIER, René. “Bakounine: une théorie de l’organisation”. In: Monde Nouveau, 2012. Idem. “Postface”. In: ANTONIOLI, Maurizio. Bakounine: entre syndicalisme révolutionnaire et anarchisme. Paris: Noir et Rouge, 2014.
[4] Nas últimas décadas, o constrangimento dos anarquistas franceses com parte da obra de Bakunin é notável, especialmente no que diz respeito ao tema da organização política. Praticamente nenhum dos numerosos programas da Aliança da Democracia Socialista foi incluído nos livros publicados deste anarquista. Talvez isso possa ser explicado pela hipótese de René Berthier, relatada numa palestra de 2014 no Brasil. Para ele, durante muito tempo, os franceses aproximaram Bakunin do marxismo ou mesmo de um suposto “marxismo libertário” defendido por Daniel Guérin. Poder-se-ia justificar, assim, ainda segundo ele, o fato de uma revista como Itineraire, que dedicou seus números aos “grandes anarquistas” da história, não ter um número sobre Bakunin. É o próprio Berthier que, em certa medida, e junto com alguns outros pesquisadores e militantes, tem retomado mais recentemente a discussão da obra bakuninana.
[5] A maior realização histórica concreta de militantes que estiveram envolvidos com a ADS foi a criação da AIT em países onde ela ainda não existia e o estabelecimento de novas seções da Internacional onde ela já estava em funcionamento; tais foram os casos da Espanha, da Itália, de Portugal e da Suíça, além de casos na América Latina, estimulados por correspondências. Cf. CORRÊA, Felipe. Surgimento e Breve Perspectiva Histórica do Anarquismo (1868-2012). São Paulo: Biblioteca Virtual Faísca, 2013.
[6]BAKUNIN, Mikhail. “Carta a Morago de 21 de maio de 1872”. In: CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes, IIHS de Amsterdã, 2000.
[7] Idem. “Carta a Cerretti de 13-27 de março de 1872”. In: CD-BOC.
[8] Idem. “Status Secrets de l’Alliance: programme et objet de l’organization révolutionnaire des frères internationaux”. In: CD-BOC. Idem. “Carta a Cerretti de 13-27 de março de 1872”. In: CD-BOC. Idem. “Carta a Morago de 21 de maio de 1872”. In: CD-BOC.
[9] Idem. “Status Secrets de l’Alliance: organization de l’Alliance des frères internationaux”. In: CD-BOC. Idem. “Status Secrets de l’Alliance: programme et objet de l’organization révolutionnaire des frères internationaux”. In: CD-BOC.
[10] Idem. “Carta a Morago de 21 de maio de 1872”. In: CD-BOC.