Na insólita tarde de 31 de agosto, o senado brasileiro, liderado pelo presidente do STF, foi o palco privilegiado do desfecho de uma briga de poder que terminou selada pelo abraço da tragédia com a farsa.
O voto pelo impeachment é um golpe parlamentar movido pelas lutas de poder das elites dirigentes e classes dominantes. Uma manobra vigarista e reacionária, feita com o ardil das oligarquias políticas, a vigília do judiciário e a neurótica agitação dos oligopólios da comunicação. O voto em separado, esse que desaprovou a cassação dos direitos políticos da presidente, é a combinação entre uma mea culpa diante do cadáver, condolências envergonhadas do PMDB por uma lado, e voto indireto em causa própria, corporativo, de Renan Calheiros e seus comparsas prevenindo o imprevisível futuro.
O PT foi humilhado pela regra dolorosa e implacável dos jogos do poder. O impeachment foi um golpe de força do parlamento burguês, um juízo político ao gosto, cozinhado na panela de pressão do bando reacionário que polarizou as federações patronais, oligopólios da mídia, setores do mais diverso espectro conservador (uma aliança que envolveu de ardentes defensores da escola austríaca, até integralistas e monarquistas), políticos e judiciais e a mobilização das ruas lideradas pela classe média ressentida.
Tragédia de um governo ajoelhado pelas elites dirigentes e setores dominantes que montou sua defesa com as convicções de que fazia em 2015 o maior ajuste da história do país. Assim afirmou eloquentemente Cardoso, advogado da defesa e repetiu a exaustão, ao longo de 13 horas, a presidente Dilma na segunda-feira.
O que foi posto ao plenário do senado, tomando os solenes termos que prendiam o objeto do julgamento, era sobretudo esse odioso ajuste anti-povo que corta na carne dos de baixo. O governo Dilma, o PT e seus aliados quiseram fazer passar sua qualidade de partido do ajuste e da responsabilidade fiscal. Diga-se de passagem, uma lei de arrocho público, neoliberal, dos anos FHC, que faz do governo de turno um gerente autorizado dos interesses rentistas da dívida pública. Portanto, a peça de defesa da presidente era provar, pra além de toda ladainha de pedaladas, decretos de crédito, etc, que fez ajuste e cortou fundo, como reclama o “mercado”. A tarefa fora confiada a um Chicago Boy no ano de 2015, o ministro-banqueiro Joaquim Levy, um eminente aluno disciplinado na usina ideológica do neoliberalismo.
A tragédia para a esquerda não é, como pode parecer simplesmente, a deposição de um governo eleito pelo voto popular e no qual muitos eleitores confiavam a execução de uma política “menos pior” de austeridade ou até mesmo uma hipotética “virada à esquerda”. Não é o golpe de timão por dentro da democracia burguesa que elegeu Dilma Roussef e o PT o que faz a tragédia. Também passa longe de um hipotético castigo do sistema de dominação sobre os “opositores irredutíveis” que acalentam o sonho de um reformismo por dentro da máquina. O trágico é como um projeto político que foi construído no calor das lutas operárias e populares da transição controlada para a nova república terminou em tal estágio. É como, em outras palavras, a democracia burguesa e as relações de poder que encarnam os aparelhos institucionais, fizeram do PT um partido do ajuste e um sócio da corrupção sistêmica. Não foi debaixo do pau de uma ditadura que se modelou toda uma geração de lutas e esforços, foi por dentro das estruturas, na posição de sujeito partícipe e entusiasta do regime liberal da democracia burguesa.
Resistir ao golpe nos direitos!
Temos que reconhecer que a farsa que teve desfecho neste golpe foi montada em cima dessa trágica história de capitulações, ainda que a “oportunidade” dos vigaristas seja o resultado de uma combinação de fatores. Mas se trata de identificar o como joga forte em tudo isso a crença liberal no “estado de direito” e seus mecanismos de representação como terreno de disputa do movimento dos trabalhadores e das causas populares.
Governar o sistema dominante é, antes de tudo, fazer arranjos com estruturas de poder que não obedecem o voto. Assim ensinam mais uma vez toda a farra do sistema financeiro e das grandes corporações privadas que jogaram o mundo no austericídio desde 2008. A recessão mundial que tocou o país e afoga na crise os setores populares com o ajuste fiscal fez pedaços do pacto social que alçou o PT como gestor do crescimento capitalista brasileiro. E a crise, como sabemos, é um discurso violento da propriedade contra os direitos sociais e os bens comuns, mas também um modo de governo de choque que descarta as técnicas políticas de colaboração de classes, ou do “diálogo” como preferem alguns.
Para as rebeldias que vem de baixo, ao movimento dos trabalhadores e todo o conjunto das classes oprimidas, não há nada para imitar ou repetir da estratégia que está inapelavelmente jogada na vala comum. Com muita intuição deixou avisada a corrente libertária, já nos primeiros ensejos do movimento operário internacional: a frente dos oprimidos deve buscar os elementos de força em si mesma. Construir pedra sobre pedra a sua capacidade política por uma confederação de rebeldias que seja acumulação combativa da democracia das organizações de base, da rede de apoio mútuo das lutas, da ação de classe intransigente contra as estruturas que exploram e oprimem.
O populismo trabalhista de Jango ou o petismo ajustado na Real Politik brasileira são muito persuasivos. A colaboração de classes que fez a cama da reação na ditadura agora o faz em democracia burguesa. Um profundo choque de ordem é planejado desde as salas das federações patronais, salas de redação e corredores palacianos. Aplicar a maior ofensiva contra as relações de trabalho e os bens comuns da últimas décadas é o desejo das hienas conspiradoras, a começar pela reforma da previdência, o congelamento dos gastos público e a liberalização geral da terceirização, fazendo uma transição da gestão da barbárie à barbárie às secas.
Nada disso passa em silêncio. Uma vasta onda de indignação vem varrendo o país contra as medidas de ajuste do governo Temer, encontrando-se e massificando-se nos atos que convocam a saída do presidente e a convocação de novas eleições. Espaço amplo e diverso, essas grandes manifestações em um início tiveram grande intervenção dirigente do petismo, mas com o desfecho de agosto consumam-se como atos onde a revolta já transborda a cadeira de força social-democrata e adquire o devido verniz classista de reconhecer de que do que se trata é de um golpe direcionado à classe, contra seus direitos históricos e suas limitadas liberdades de luta e organização.
Urge a necessidade de seguir massificando e radicalizando as convocações pelo Fora Temer enquanto ofensiva tática para derrotar o ajuste fiscal. Mas isso não basta. Junho resgatou o valor da tática da revolta popular como golpe que esgarça o inimigo em um rápido lampejo de tempo, mas também nos demonstrou que essa tática tem seus limites, a saber, a falta de maior expressão de organizações de base dos de baixo. Seguir na árdua tarefa de reorganizar a classe onde ela vive, estuda e trabalha deve ser o grande horizonte estratégico para fazer frente aos duros tempos que aguardam a nossa classe. É dessa acumulação que forjaremos uma alternativa política. O poder não se toma do monte dos aparelhos de disciplina e controle do sistema dominante. O nosso poder coletivo, o poder popular, se cria pelas relações sociais que gestamos pela luta e organização popular de baixo pra cima.