Arquivo da tag: rafael viana da silva

[FARJ] Libera #166

Retirado de: https://anarquismorj.wordpress.com/2015/12/19/libera-166/

O ano acabou? Para a luta e o anarquismo não! Saiu o último número do ano do nosso jornal, o Libera, de número 166. Firme e forte na divulgação de um programa anarquista para as lutas e na propaganda da nossa ideologia nas luta de classes! Nesta edição, o editorial traz uma análise sobre o  “Avanço conservador e o papel do Estado”. Também há um relato e análise do congresso nacional do MPA e a necessidade de construir uma intervenção independente e autônoma nos movimentos camponeses. Temos também um texto teórico sobre a contribuição de Bakunin ao debate da organização política anarquista. do militante anarquista e um relato sobre a luta de base nos Correios.  O Libera também conta com o famoso Bar-Restaurante Lixo da História que ganhou dois novos integrantes e relatos de atividades que nossa organização se envolveu.

Recomendamos também que leiam a análise da CAB, lançada após a impressão do Libera sobre a polarização governismo x impeachment em seu site.

Você pode conseguir o Libera fisicamente com nossos militantes e apoiadores e na Biblioteca Social Fábio Luz. Caso deseje receber um número grande para distribuir, entre em contato conosco.
O Libera #166 pode ser baixado clicando na figura abaixo ou aqui.

Errata: Onde se lê no editorial na página 2 “Mas ele nuca (sic) foi” ler “Mas ele não é”.

libera-166

[FARJ] Contribuições de Bakunin ao debate sobre a organização política anarquista – Felipe Corrêa e Rafael V. da Silva

Retirado de:                                                                         https://anarquismorj.wordpress.com/2015/12/13/contribuicoes-de-bakunin-ao-debate-sobre-a-organizacao-politica-anarquista-felipe-correa-e-rafael-v-da-silva/

Felipe Corrêa e Rafael V. da Silva [1]

Apesar das obras completas de Bakunin terem sido publicadas recentemente em francês – na edição de 2000 do IIHS de Amsterdã, depois de tentativas importantes de compilar parte significativa de sua obra –, seus escritos sobre as chamadas “Fraternidade”, de 1864, e “Aliança”, de 1868, para utilizar a terminologia proposta por Max Nettlau, são pouquíssimo conhecidos. A estratégia de massas de Bakunin vem sendo melhor discutida, em textos relevantes como, por exemplo, Bakunin: fundador do sindicalismo revolucionário, de Gastón Leval [2] e vários outros de René Berthier. [3]

No entanto, sua teoria da organização política, amplamente abordada em documentos escritos com o intuito de fundamentar – em termos de princípios, programa, estratégia e organicidade – suas propostas políticoorganizativas, é pouco ou quase nada discutida. Parece haver, em especial entre os anarquistas franceses, certo constrangimento desses escritos, como se constituíssem parte de uma herança autoritária, talvez de inspiração blanquista e jacobina, que permaneceu no pensamento do autor e que não deveria ser trazida a tona.[4] Consideramos que as posições de Bakunin sobre a organização política anarquista, de 1868 em diante, podem ser conciliadas plenamente com sua estratégia de massas, proposta para a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), e, assim, ser considerada parte relevante de seu anarquismo. Tais posições parecem ter força, ainda hoje, para subsidiar reflexões frutíferas acerca do modelo organizativo mais adequado para uma intervenção anarquista na realidade.

Bakunin sustentou que a Aliança da Democracia Socialista (ADS) deveria ter um duplo objetivo; por um lado, estimular o crescimento e o fortalecimento da AIT; [5] por outro, aglutinar em torno de princípios, de um programa e de uma estratégia comum, aqueles que tivessem afinidades político-ideológicas com o anarquismo – ou, como em geral se chamava à época, do socialismo ou coletivismo revolucionário. [6] Em suma, criar/fortalecer uma organização política e um movimento de massas, o dualismo organizacional:

Eles [os militantes da ADS] formarão a alma inspiradora e vivificante desse imenso corpo a que chamamos Associação Internacional dos Trabalhadores […]; em seguida, se ocuparão das questões que são impossíveis de serem tratadas publicamente – eles formarão a ponte necessária entre a propaganda das teorias socialistas e a prática revolucionária. [7]

Para Bakunin, a ADS não precisaria ter uma quantidade muito grande de militantes: “o número desses indivíduos não deve, pois, ser imenso”; ela deveria constituir uma organização política, pública e secreta, de minoria ativa, com responsabilidade coletiva entre os integrantes, que reunisse “os membros mais seguros, os mais devotados, os mais inteligentes e os mais enérgicos, em uma palavra, os mais íntimos”, nucleados em diversos países, com condições influenciar determinantemente as massas trabalhadoras.[8] Essa organização deveria ter por base comum um regulamento interno e um programa estratégico, os quais estabeleceriam, respectivamente, seu funcionamento orgânico, suas bases político-ideológicas e programático-estratégicas, forjando um eixo comum para a atuação anarquista.

Poderia tornar-se membro da organização somente “aquele que tiver francamente aceitado todo o programa com todas suas consequências teóricas e práticas e que, junto à inteligência, à energia, à honestidade e à discrição, tenham ainda a paixão revolucionária”.[9] Internamente, a organização política bakuniniana não possui hierarquia entre os membros e as decisões são tomadas de baixo para cima, em geral por maioria (variando do consenso à maioria simples, a depender da relevância da questão), e com todos os membros acatando as decisões tomadas coletivamente. Isso significa aplicar o federalismo – defendido como forma de organização social, que deve descentralizar o poder e criar “uma organização revolucionária de baixo para cima e da circunferência ao centro” – nas instâncias internas da organização anarquista. Externamente, a ADS não deve exercer relação de dominação e/ou hierarquia sobre a AIT, mas a complementar; o inverso também seria verdadeiro. Juntas, essas duas instâncias organizativas se complementam e potencializam o projeto revolucionário dos trabalhadores, sem a submissão de qualquer uma das partes.

A Aliança é o complemento necessário da Internacional… – Mas a Internacional e a Aliança, tendendo para o mesmo objetivo final, perseguem ao mesmo tempo objetivos diferentes. Uma tem por missão reunir as massas operárias, os milhões de trabalhadores, com suas diferenças de profissões e países, através das fronteiras de todos os Estados, em um só corpo imenso e compacto; a outra, a Aliança, tem por missão dar às massas uma direção realmente revolucionária. Os programas de uma e de outra, sem serem de modo algum opostos, são diferentes pelo próprio grau do seu desenvolvimento respectivo. O da Internacional, se tomado a sério, contém em germe, mas somente em germe, todo o programa da Aliança. O programa da Aliança é a explicação última do [programa] da Internacional.[10]

O dualismo organizacional bakuniniano caracteriza-se pela união dessas duas organizações – uma política, de minorias (quadros); outra social, de maiorias (massas) – e sua articulação horizontal e permanente potencializaria a força dos trabalhadores e aumentaria as chances do processo de transformação social com fins anarquistas.

Dentro do movimento de massas, a organização política dá mais eficácia aos anarquistas nas disputa de posições e na construção de um projeto revolucionário. Ela contrapõe, organizadamente e em favor de seu programa, forças que agem em sentido distinto e que buscam: elevar à condição de princípio uma das diferentes posições político-ideológicas e/ou religiosas, minimizar seu caráter eminentemente classista, fortalecer as posições reformistas (que veem as reformas como um fim) e a perda de combatividade do movimento, estabelecer hierarquias internas e/ou relações de dominação, direcionar a força dos trabalhadores para as eleições e/ou para estratégias de mudança que envolvam a tomada do Estado, atrelar o movimento a partidos, Estados ou outros organismos que retiram, neste processo, o protagonismo das classes oprimidas e de suas instituições.

[1] Este texto é um excerto (com novo título) extraído da cartilha de formação “BAKUNIN, MALATESTA E O DEBATE DA PLATAFORMA A QUESTÃO DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA ANARQUISTA”. O leitor pode ler o artigo completo no site do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

[2] LEVAL, Gaston. Bakunin, Fundador do Sindicalismo Revolucionário. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2007

[3] Cf., por exemplo: BERTHIER, René. “Bakounine: une théorie de l’organisation”. In: Monde Nouveau, 2012. Idem. “Postface”. In: ANTONIOLI, Maurizio. Bakounine: entre syndicalisme révolutionnaire et anarchisme. Paris: Noir et Rouge, 2014.

[4] Nas últimas décadas, o constrangimento dos anarquistas franceses com parte da obra de Bakunin é notável, especialmente no que diz respeito ao tema da organização política. Praticamente nenhum dos numerosos programas da Aliança da Democracia Socialista foi incluído nos livros publicados deste anarquista. Talvez isso possa ser explicado pela hipótese de René Berthier, relatada numa palestra de 2014 no Brasil. Para ele, durante muito tempo, os franceses aproximaram Bakunin do marxismo ou mesmo de um suposto “marxismo libertário” defendido por Daniel Guérin. Poder-se-ia justificar, assim, ainda segundo ele, o fato de uma revista como Itineraire, que dedicou seus números aos “grandes anarquistas” da história, não ter um número sobre Bakunin. É o próprio Berthier que, em certa medida, e junto com alguns outros pesquisadores e militantes, tem retomado mais recentemente a discussão da obra bakuninana.

[5] A maior realização histórica concreta de militantes que estiveram envolvidos com a ADS foi a criação da AIT em países onde ela ainda não existia e o estabelecimento de novas seções da Internacional onde ela já estava em funcionamento; tais foram os casos da Espanha, da Itália, de Portugal e da Suíça, além de casos na América Latina, estimulados por correspondências. Cf. CORRÊA, Felipe. Surgimento e Breve Perspectiva Histórica do Anarquismo (1868-2012). São Paulo: Biblioteca Virtual Faísca, 2013.

[6]BAKUNIN, Mikhail. “Carta a Morago de 21 de maio de 1872”. In: CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes, IIHS de Amsterdã, 2000.

[7] Idem. “Carta a Cerretti de 13-27 de março de 1872”. In: CD-BOC.

[8]  Idem. “Status Secrets de l’Alliance: programme et objet de l’organization révolutionnaire des frères internationaux”. In: CD-BOC. Idem. “Carta a Cerretti de 13-27 de março de 1872”. In: CD-BOC. Idem. “Carta a Morago de 21 de maio de 1872”. In: CD-BOC.

[9] Idem. “Status Secrets de l’Alliance: organization de l’Alliance des frères internationaux”. In: CD-BOC. Idem. “Status Secrets de l’Alliance: programme et objet de l’organization révolutionnaire des frères internationaux”. In: CD-BOC.

[10]  Idem. “Carta a Morago de 21 de maio de 1872”. In: CD-BOC.

[Rusga Libertária] CARTILHA BAKUNIN, MALATESTA E O DEBATE DA PLATAFORMA: A QUESTÃO DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA ANARQUISTA

Retirado de:                                              http://rusgalibertaria.noblogs.org/post/2015/10/06/cartilha-bakunin-malatesta-e-o-debate-da-plataforma-a-questao-da-organizacao-politica-anarquista/
Capa Impressão
A intenção de produzir este material em formato de cartilha é a de trazer para discussão a necessidade da organização anarquista. Apresentamos, assim, alguns importantes referenciais teóricos que realizaram esse debate durante o próprio desenvolver histórico/prático do anarquismo.

Para nós da Rusga Libertária, a organização deve ter “por base comum um regulamento interno e um programa estratégico; os quais estabelecem, respectivamente, seu funcionamento orgânico, suas bases político-ideológicas e programático-estratégicas, forjando um eixo comum para a atuação anarquista”.

Trazendo as reflexões de Bakunin, Malatesta e o Grupo Dielo Truda – também os debates realizados entre os dois últimos. É exposto, neste material, um pouco do referencial que tomamos para a própria formação da nossa organização política. Jamais tomando como “deuses” ou “dogmas irrefutáveis”, mas, tendo-os como ferramenta importante para a própria compreensão dos debates traçados sobre a forma e o papel da organização política anarquista.

Estudar, Organizar e Lutar – unindo sempre teoria e prática – tendo como norte a Construção do Poder Popular!!!

[FARJ] Anarquismo: uma introdução ideológica e histórica

Retirado de: http://anarquismorj.wordpress.com/textos-e-documentos/teoria-e-debate/anarquismo-introducao-historica-rafael-v-da-silva/

“Com a crescente presença do anarquismo nas ruas, nos movimentos populares e, principalmente, como uma referência aos que hoje lutam, determinados teóricos marxistas correm para tentar “provar” que o anarquismo é uma ideologia fracassada e pequeno-burguesa. Alguns destes teóricos, num devaneio cínico, ousam sugerir, com desrespeito aos anarquistas que tombaram lutando contra o capitalismo, que o anarquismo é algo parecido com o neoliberalismo.

Para os anarquistas que há anos lutam e defendem um programa político libertário nas lutas sociais, o momento é de esclarecer equívocos, pois mesmo com uma história rica de lutas e tradições de resistência ao capitalismo, o anarquismo é vilipendiado por acadêmicos e intelectuais “orgânicos” mal intencionados. Reproduzindo o discurso burguês, que tenta transformar o anarquismo numa caricatura, em vez de realizarem um debate baseado em fatos históricos bem fundamentados e contextos concretos, pensam o anarquismo pelas lentes da burguesia ou simplesmente imaginam o anarquismo, pelo que eles acham que é.”

Texto teórico que responde as deformações que certos “intelectuais” marxistas tentam fazer com o anarquismo. Como se já não bastasse a mídia burguesa manipulando e nos caricaturando, certas legendas trotskistas tentam por meio do golpe baixo teórico, dizer o que o anarquismo NÃO É. Não fugimos do debate teórico e das polêmicas, apesar de achar muito mais produtivo, afirmar nossa posição em meio às lutas dos movimentos populares e golpear o inimigo em comum. Tampouco podemos dizer que ficamos confortáveis ao ler uma série de inverdades, incorreções históricas e absurdos sem nenhum fundamento nos fatos. Qualquer um que conheça minimamente o anarquismo se assustaria com tamanha capacidade de produzir uma crítica sectária e inverídica de nossa ideologia política!

Enquanto determinadas legendas morenistas insistem em atacar o anarquismo seguimos com segurança ideológica e firmeza ética combatendo os inimigos em comum!

Anarquismo é luta!

 

Texto integral:

 

Anarquismo: uma introdução ideológica e histórica – Rafael V. da Silva

Rafael V. da Silva é Historiador e Membro da Comissão Editorial da Faísca Publicações e do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

INTRODUÇÃO

Com a crescente presença do anarquismo nas ruas, nos movimentos populares e, principalmente, como uma referência aos que hoje lutam, determinados teóricos marxistas correm para tentar “provar” que o anarquismo é uma ideologia fracassada e pequeno-burguesa. Alguns destes teóricos, num devaneio cínico, ousam sugerir, com desrespeito aos anarquistas que tombaram lutando contra o capitalismo, que o anarquismo é algo parecido com o neoliberalismo.

Organização Popular

Bandeira rubro-negra não incomoda apenas a burguesia, mas também determinadas legendas políticas.

Para os anarquistas que há anos lutam e defendem um programa político libertário nas lutas sociais, o momento é de esclarecer equívocos, pois mesmo com uma história rica de lutas e tradições de resistência ao capitalismo, o anarquismo é vilipendiado por acadêmicos e intelectuais “orgânicos” mal intencionados. Reproduzindo o discurso burguês, que tenta transformar o anarquismo numa caricatura, em vez de realizarem um debate baseado em fatos históricos bem fundamentados e contextos concretos, pensam o anarquismo pelas lentes da burguesia ou simplesmente imaginam o anarquismo, pelo que eles acham que é. Essa é uma atitude, utilizando o jargão marxista, completamente idealista, pois não parte de fatos históricos, mas de suposições sem qualquer respaldo concreto na realidade.

Cabe dizer que parte da responsabilidade do crescimento do anarquismo ou de sua influência vem da prática de muitos partidos marxistas, alguns dos quais formaram governos de “esquerda” e aliaram-se à burguesia (compostos por antigos ou novos quadros marxistas). Há décadas, muitos trabalhadores acreditaram na formação do Partido dos Trabalhadores (PT) como uma ferramenta de luta e emancipação. É esse mesmo partido que hoje massacra, criminaliza e persegue manifestantes e movimentos sociais. É esse mesmo partido que viabiliza os mega-eventos com apoio dos setores mais conservadores da sociedade e desenvolve o controle social nas favelas e periferias. Muitos que estão na oposição de esquerda ao PT reproduzem algumas práticas semelhantes aquelas do partido; vem daí, e não apenas da mídia burguesa, o sentimento de apartidarismo nos movimentos populares e sociais. Oposições supostamente revolucionárias e libertárias no “discurso” reproduzem comportamentos burocráticos/autoritários ou atuam como freio das lutas, fortalecendo práticas de aparelhamento de entidades estudantis e populares.

Quando derrotados do ponto de vista de seus métodos, ou desmoralizados perante os fatos, resta como medida desesperada, apelarem para os ataques ao nosso núcleo duro ideológico. Nossa indignação não é por fazer um debate teórico e ideológico, mas por ter de recorrer a dados tão elementares aos que se pretendem socialistas “científicos”, mas que reproduzem discursos completamente vazios e superficiais – ou seja, baseiam-se no senso comum mais vulgar, que contradiz qualquer perspectiva científica. Para ser mais preciso: alguns partidos e pretensos teóricos precisam debater a política e o anarquismo de forma séria, ou correm o risco de virar uma caricatura permanente.

 

O QUE O ANARQUISMO É?

2 (1)

Longe das caricaturas políticas construída pelos nossos adversários, o anarquismo tem princípios políticos-ideológicos muito bem definidos.

Para evitar caricaturas sobre o anarquismo ou qualquer corrente política precisamos primeiro evitar a tentação ahistórica e, portanto, não científica, de definir uma ideologia política pela sua análise etimológica. Uma análise etimológica do termo “anarquia” e de seus derivados só pode apontar para uma negação – do governo, do Estado, da autoridade –, ou seja, para elementos “destrutivos”, de crítica social; o anarquismo, entretanto, sempre possuiu elementos construtivos, objetivos e estratégias para atingi-los.

Mikhail Bakunin e James Guillaume, conforme apontam Marianne Enckel (1991, p. 199 apud Corrêa; Silva, 2013.) e René Berthier (2010, p. 127 apud Corrêa; Silva, 2013), tiveram reticências em relação à utilização do termo “anarquista” para caracterizar nossa corrente socialista e libertária, justamente por razão do senso comum que existia em torno dele. Foi somente a partir da cisão da Primeira Internacional, em 1872, e da fundação, naquele mesmo ano, da Internacional Antiautoritária, uma associação popular e operária que reuniu a maior parte dos anarquistas europeus, que o termo “anarquia” e seus derivados passaram a ser utilizados mais constantemente pelos próprios anarquistas.

Os fatos históricos demonstram que o anarquismo surge a partir dos dilemas, das lutas e do contexto histórico de formação da classe trabalhadora na segunda metade do século XIX. É absurdo e completamente falso, do ponto de vista histórico, dissociar a raiz e o tronco socialista e classista do anarquismo. O anarquismo não surgiu da cabeça de meia dúzia de pensadores (ainda que muitos teóricos tenham dado sua contribuição) e tampouco é uma filosofia “individual”, pois ele surge de uma experiência da classe trabalhadora. O anarquismo se desenvolve dentro das discussões sobre quais seriam os meios de se chegar à sociedade socialista. O anarquismo é a ala libertária do socialismo que surgiu das discussões e reflexões coletivas da classe trabalhadora. As divergências sobre quais seriam as melhores estratégias para conduzir os trabalhadores a uma sociedade sem classes, acabaram por conformar a própria tradição anarquista e definir também as diferenças desta tradição com outros campos do socialismo, como o marxismo.

Não é coincidência que onde há anarquismo, no final do século XIX, há seções da Associação Internacional dos Trabalhadores, e há perspectivas de formação do sindicalismo revolucionário nos principais centros urbanos do mundo. Para o anarquismo sempre foi bastante claro e bem definido a identificação de que, nos diversos sistemas de dominação, com suas respectivas estruturas de classes, as dominações de classe permitem conceber a divisão fundamental da sociedade em duas grandes categorias globais e universais, constituídas por classes com interesses inconciliáveis: as classes dominantes e as classes oprimidas. O conflito social entre essas classes caracteriza a luta de classes e a superação do capitalismo está na raiz da proposta econômica anarquista.

O anarquismo também não é sinônimo de individualismo, antiestatismo ou antítese do marxismo; constitui um tipo de socialismo caracterizado por um conjunto preciso de princípios político-ideológicos, que inclui a oposição ao Estado, mas que não se resume a ela. Os anarquistas historicamente se opuseram aos individualistas e consideravam o individualismo uma “influência burguesa no anarquismo” (Fabbri, 2009). Bakunin, Kropotkin e Malatesta foram todos duros críticos do individualismo, apenas para citar os mais conhecidos. O individualismo sempre foi historicamente um fenômeno marginal no anarquismo, apesar do anarquismo sempre reconhecer a importância de conciliar o socialismo com a liberdade individual e coletiva.

O anarquismo baseia-se em análises racionais, métodos e teorias que não são idealistas (explicações metafísicas/teológicas). Não afirma, em geral, a prioridade das idéias em relação aos fatos; apresenta distintas posições teóricas a este respeito. Do ponto de vista dos anarquistas clássicos, pode-se dizer que Bakunin, Piotr Kropotkin, Élisée Reclus, Rudolf Rocker e Errico Malatesta sustentavam perspectivas teóricas distintas, sem terem deixado, por isso, de ser anarquistas. Os debates fundamentais dentro do anarquismo se dão em torno dos seguintes temas: organização, lutas de curto prazo e o papel da violência. As divergências estão nos debates estratégicos, que dão origem às diferentes correntes anarquistas. Por isso é equivocado reproduzir a caricatura burguesa de que há “dezenas de anarquismos” ou que há “tantos anarquismos quanto anarquistas” no mundo. Há diferentes estratégias que dividem o anarquismo em correntes (como qualquer ideologia política), mas seu tronco histórico tem princípios políticos muito bem definidos e que demonstram a existência de uma coerência interna.

Os anarquistas em sua grande maioria não negam a organização e as lutas de curto prazo como um possível caminho para se atingir a revolução. Por isso, é completamente infundado e incorreto afirmar que os anarquistas desejam abolir o Estado imediatamente como num “passe de mágica” ou “por decreto”. Aliás, a última coisa que os anarquistas acreditam é numa revolução feita por decreto, em parlamentos burgueses ou na via institucional. Os anarquistas sabem que qualquer luta contra o capitalismo deve partir de necessidades materiais e as lutas de curto prazo, nesse sentido, constituem ferramentas privilegiadas. Qualquer luta contra um adversário desse porte envolve a busca permanente de força social. E no parlamento não é possível gerar o antagonismo necessário para a superação do capitalismo, apenas uma oposição. Era isso que a estratégia sindical dos anarquistas defendia dentro dos sindicatos revolucionários do início do século e é isso que fazem hoje a maioria dos anarquistas organizados em movimentos populares, rurais e sindicatos na construção do que chamamos de poder popular. Os anarquistas históricos chamavam essa etapa de “ginástica revolucionária”, que era a conquista das necessidades populares a partir da luta, da ação direta, sempre visando à destruição final do sistema capitalista e do Estado. Pois se o Estado é produto de um determinado contexto histórico e de afirmação do capitalismo, sua existência reintroduz a dominação política e reforça a dominação econômica. Por isso, Bakunin entende o Estado como a forma específica de organização das classes dominantes. E mais: além de defender os interesses das classes dominantes, ele possui a capacidade estrutural de selecionar membros de diversas classes e transformá-los em uma classe dominante particular, a burocracia. Assim, para ele, os trabalhadores não podem utilizar o Estado como meio para atingir uma sociedade socialista e libertária visto que fazendo isso, no máximo, o que se pode atingir é a transformação de um restrito setor dos trabalhadores numa nova classe dominante. Qualquer Estado implica dominação e existência de classes sociais. Portanto, para um projeto de emancipação, os anarquistas defendem uma coerência estratégica que subordina as táticas à estratégia e esta ao objetivo finalista, de maneira que por meios libertários e igualitários se possa caminhar a uma sociedade libertária e igualitária, ou seja, de fato, socialista. Para Bakunin, o Estado não deve ser substituído por uma organização “ideal”, mas pela organização de classe dos trabalhadores; em seu tempo, pelas estruturas de base da Internacional. Não se trata de um sistema perfeito, mas que é criado a partir da experiência histórica e concreta da classe trabalhadora.

Mapa produzido pelo pesquisado sulafricano Michael Schmidt mostra os intentos revolucionários do anarquismo ao redor do mundo,

Mapa produzido pelo pesquisado sulafricano Michael Schmidt mostra os intentos revolucionários do anarquismo ao redor do mundo,

O anarquismo, muito distante de imaginar “uma revolução e um homem ideal”, sempre partiu de realidades e contextos reais para fazer política. Se não fosse desse jeito, sua extensão e impacto históricos não teriam sido tão amplos: presente desde 1868 aos dias de hoje, e com presença registrada nos cinco continentes. A principal tarefa à qual se dedicaram os anarquistas foi a construção de sindicatos revolucionários e a participação nesses sindicatos. Portanto, ignorar as manifestações do anarquismo nos movimentos populares, em especial no seio do sindicalismo de intenção revolucionária, implica amputar do anarquismo sua principal manifestação histórica: a luta econômica e social.

O sindicalismo revolucionário que é sua principal estratégia histórica foi hegemônico em distintos países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, França, Paraguai, Peru, Portugal e Uruguai. O anarquismo protagonizou episódios revolucionários no México (1910-1911), na Espanha (1936-1939), na Ucrânia (1919-1921) e na Manchúria (1929-1931). O anarquismo teve uma participação importante e relevante em processos de luta na África do Sul, Alemanha, Argélia, Austrália, Bulgária, Canadá, China, Egito, Equador, Estados Unidos, Grécia, Inglaterra, Itália, Japão, Namíbia, Nigéria, Nova Zelândia, Rússia, Suécia, Venezuela, Zâmbia e Zimbábue. Pode-se dizer que o anarquismo se constituiu como uma expressão de massa em diversos e variados casos, mesmo tendo sido combatido por governos comunistas e capitalistas e a despeito de sua história ter sido mascarada e distorcida por muitos acadêmicos marxistas e liberais. Os anarquistas não estiveram apenas envolvidos em lutas no início do século e o anarquismo não morreu nas barricadas da guerra civil espanhola. Os anarquistas estiveram envolvidos ativamente nas lutas contra o fascismo e o stalinismo na Bulgária, na Revolução Cubana, na resistência armada à ditadura uruguaia (OPR-33 e FAU) e argentina (Resistência Libertária). Envolveram-se nas lutas do Maio de 68, nos movimentos de libertação africanos e argelinos, na Comuna de Oaxaca em 2006 e para dizer o óbvio, nas últimas décadas e lutas populares do Brasil.

O anarquismo, ao contrário dos detratores mal informados ou mal intencionados, não é uma ideologia restrita a estudantes ou a “pequena-burguesia”. O anarquismo mobilizou em especial o proletariado urbano (operariado), mesmo que trabalhadores dos campos, campesinato, marginalizados e pobres em geral tenham sido mobilizados permanentemente e reforçado a noção de sujeito revolucionário plural do anarquismo, que se forja no seio da luta de classes. Como parte de um estudo de mais de 10 anos, Michael Schmidt realiza uma comparação entre 27 localidades com significativa presença histórica anarquista. Ele demonstra que os anarquistas mobilizaram historicamente trabalhadores industriais, rurais e camponeses. Em 19 dessas localidades, as bases do anarquismo estão nas cidades, entre os trabalhadores da indústria, correspondendo a 70% dos casos em questão; em oito delas, as bases do anarquismo estão nos campos, principalmente entre camponeses, correspondendo a 30% dos casos.

Por fim, o anarquismo também não é negação da política, do poder. Os anarquistas defendem uma determinada concepção de política e de poder. O que os anarquistas condenam é um determinado tipo instituído de relação de poder, que é a dominação (econômica, política, social), cujo pilar não é apenas o sistema de produção capitalista, mas também o Estado, a religião, a educação dominante, o imperialismo, a dominação de gênero e de raça. Nessa crítica, a dominação de classe possui grande relevância. Além da crítica do sistema de dominação, os anarquistas elaboram a defesa de um sistema de autogestão e das estratégias capazes de promover a transformação social de um sistema para outro. O poder para os anarquistas está na tomada das fábricas, dos bairros, dos meios de produção, das minas, das ruas e finalmente no que os zapatistas chamam de “povo em armas”. Beira a calúnia insinuar que o anarquismo defenda pequenas unidades econômicas sem articulação umas com as outras, como se o anarquismo (insinuam os críticos) não fosse adequado para as grandes cidades industriais. Afirmar que o anarquismo defende o pleno governo do “indivíduo” e a liberdade irrestrita é o discurso que a burguesia construiu contra nós e que infelizmente alguns “socialistas” e oportunistas compraram e vendem em seus jornais. A concepção de liberdade do anarquismo sempre foi social e choca-se com a existência do capitalismo. “Ser coletivamente livre é viver no meio de homens livres e ser livre pela liberdade deles” afirmou Bakunin. Não é possível para os anarquistas, portanto, ter liberdade no capitalismo enquanto o outro é escravo.

É falso dizer que os anarquistas não têm idéias bem definidas a respeito da economia ou da sociedade. Essas idéias foram postas em prática na Espanha e em outros processos revolucionários. Na Espanha em 1936, trens, ônibus, cinemas e 70% da produção industrial de sua região mais industrializada foi autogerida pelos trabalhadores com sucesso, mesmo num contexto de guerra civil e de luta contra o fascismo. Não se pode dizer que não houve problemas, mas os anarquistas não pretendem resolver “idealmente” todos os problemas antecipadamente, pois sabem que muitas das questões deverão ser resolvidas pelo próprio povo. E que nos processos revolucionários, mesmo as idéias mais bem determinadas e delineadas (como a de Engels, que achava que quando os comunistas tomassem o Estado sua abolição ia ser lenta e gradual) são constantemente superadas pela realidade dos fatos (Stálin, URSS). A luta popular e a auto-organização dos trabalhadores mostram que vale à pena lutar e caminhar com o anarquismo. Ele é um guia importante para os trabalhadores e assim o será, gostem seus detratores ou não.

REFERÊNCIAS

 BAKUNIN, Mikhail. Escritos de Filosofía Política II. In: KCL. [http://www.kclibertaria.comyr.com/lpdf/l105.pdf]

BERTHIER, René. Do Federalismo. São Paulo: Editora Imaginário, 2011.

CORRÊA, Felipe; SILVA, Rafael Viana da. “Anarquismo, Teoria e História”. In: ITHA, 2013. [http://ithanarquista.wordpress.com/2013/09/22/correa-silva-anarquismoteoriaehistoria/]

COORDENAÇÃO ANARQUISTA BRASILEIRA. Distintas Abordagens Teóricas dos Anarquistas: a relação entre as esferas sociais. No Prelo.

FABRRI, Luigi. “Influencias Burguesas sobre el Anarquismo”. In: Anarkismo.net, 2009. [http://www.anarkismo.net/article/14546]

FARJ. Anarquismo Social e Organização. Rio de Janeiro: Editora Faísca, 2008.

LÓPEZ, Fabio López. Poder e Domínio: uma visão anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001.

Deixemos todas as bandeiras vermelhas levantadas… Mas as bandeiras rubro-negras exigem respeito!

ParasiteFARJ1º de julho de 2013 Rafael Viana da Silva*, Bruno Lima Rocha**, Felipe Corrêa***

Nos final dos anos 40, numa conjuntura que, guardadas às proporções, traz similitudes com nosso atual momento, o anarquista Pedro Catalo reclamava nas páginas do periódico Ação Direta que, na Praça do Patriarca em São Paulo, onde o povo ia às ruas debater a situação política do país, “quando os oradores que sobem são anarquistas, a gritaria toma proporções atordoantes”. Segundo Catalo, “organizaram uma brigada de desordeiros, encarregados de gritar, assobiar, insultar e apostrofar todos os quantos em sua arengas, não observem os ditames absurdos da linha justa Prestiana.” (CATALLO, Pedro. Infâmia Bolchevista. Ação Direta, Rio de Janeiro, 30/11/1946, nº 26, p. 01) Catalo expunha, assim, uma atitude que pode ser considerada como contrária à democracia direta defendida pelos anarquistas nos espaços públicos. A claque era o supra-sumo do stalinismo brasileiro, encabeçado por um partido cujos líderes eram, em sua maioria, ex-militares tenentistas.

Vale situar o leitor no período. Luiz Carlos Prestes saiu da cadeia para dirigir o Movimento Queremista, indo a comícios varguistas, mesmo após o Estado Novo ter entregado sua companheira, Olga Benário, aos nazistas. Esse tipo de cálculo político frio – embasado na real politik leninista – sempre acaba por fortalecer o pior do dirigismo político nas esquerdas. A saber, a massa a vaiar os oradores anarquistas era base do Partido Comunista do Brasil (ainda PCB), em seu curto período de legalidade, quando Prestes, de preso político torna-se senador da república na Constituinte de 1946. Depois, a seção brasileira do Partido de Moscou cai na ilegalidade e, por um brevíssimo período, flerta com a linha revolucionária (tese de ’50), para depois arrepender-se de tudo. Qualquer semelhança com os arrependidos ex-comunistas, hoje no PT e à frente da república, não é nenhuma coincidência.

De volta ao nosso contexto, apesar das diferenças cronológicas e ideológicas, o protesto de Pedro Catalo se coaduna em algumas linhas com o incômodo manifestado no texto intitulado “Não deixem abaixar as bandeiras vermelhas” do professor Valério Arcary, que expôs sua opinião acerca do crescente antipartidarismo que tomou conta de algumas manifestações no Brasil. Não vamos repetir as sínteses conjunturais para evitar cansar o leitor, mas cabe dizer que, na crescente onda de mobilizações, os movimentos sociais conseguiram uma vitória ao diminuir, por meio da luta e da ação direta, os preços das passagens em diversas cidades do país. O que no início alimentou esperanças quase virou decepção, com os alarmes de golpe e a infiltração da direita e da extrema direita nos protestos, na tentativa de capturar as pautas dos manifestantes, canalizando as demonstrações de força popular para ideologias reacionárias e ufanistas. Nesse cenário, a mídia corporativa estimulou a divisão entre manifestantes e “baderneiros”, tentando consolidar também a criação de bodes expiatórios, no intuito claro ou mascarado, de associar estritamente a revolta popular a determinadas ideologias políticas, numa manobra clara de criminalizar grande parte dos que lutavam. O auge desta medida foi a invasão da Polícia Civil à sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG).

Escrevemos esse texto alguns dias depois do artigo do prof. Arcary. Portanto, estamos com a “vantagem” dos desdobramentos dos fatos e nosso intuito é realizar um diálogo. Também o fazemos alguns dias após o texto de Zé Maria, em que o dirigente do PSTU pede desculpas formais a duas organizações anarquistas, FARJ e UNIPA, o que compreendemos generalizar as desculpas pelas práticas equivocadas anteriores. Ainda que a justa retratação do dirigente nacional do PSTU contribua, como contribui qualquer autocrítica franca, com nosso respeito, ela não pode esconder nossas diferenças políticas. Mantemos a crítica, mas reforçamos a necessidade tanto do debate sadio entre as esquerdas, assim como a unidade necessária para reforçar o poder popular a partir da avançada de Junho de 2013. Obrigamo-nos a dizer isso, pois as primeiras informações que circulavam no interior do campo ampliado da esquerda, em específico no trotskismo, eram a de que os anarquistas, esses “incorrigíveis” culpados da história, promoviam ativamente o antipartidarismo.

Essa era a informação divulgada amplamente pelo setor de Juventude do PSTU que, num texto catalisador dessa opinião, Henrique Canary dizia que o liberalismo burguês era “a verdadeira filosofia do anarquismo”, comparando o neoliberalismo de Margaret Tatcher ao anarquismo. Este artigo, sofrível do ponto de vista teórico e histórico, e que pode vir a merecer uma resposta adequada num momento breve, reafirmava e insuflava de maneira sectária os militantes do PSTU e de outros partidos de esquerda a difundir a informação de que os anarquistas “cumpriam um papel verdadeiramente vergonhoso” e “tentam proibir, inclusive por meio da força física, que os militantes dos partidos políticos exerçam uma liberdade elementar.”

Sabemos que, nas fileiras do PSTU, assim como das dezenas de agrupações trotskistas, existem militantes devotados a causa da classe e do povo. Mas, também por isso, nos vemos obrigados a afirmar – de forma dura,  mas fraterna – que essa opinião é completamente equivocada, mesmo que venha sendo reproduzida em outras análises (a)históricas do PSTU e (infelizmente) por outros setores marxistas, que enfatizam o inevitável “papel reacionário dos anarquistas” (PSTU, Lutemos juntos contra os governos). Isso, em geral, é feito reproduzindo a teoria cíclica da “crise de direção”, “apoliticismo” e “não-Estado” como sinônimos de capitulacionismo ou outras generalizações absurdas. No campo oposto do trotskismo, esta opinião (apartidarismo do movimento popular sinônimo de antipartidarismo e apoliticismo) coincide curiosamente com a análise do governador petista Tarso Genro que, em sua sanha repressiva contra a FAG, associava o anarquismo a grupos de extrema-direita. Aliás, também é curioso e triste, como o intuito caluniador do ex-dirigente do Partido Revolucionário Comunista (PRC), o atual governador Tarso Genro, infelizmente encontrou certo eco nos artigos escritos por filiados do PSTU. Companheiros, se, de fato, a intenção é a unidade da esquerda classista combativa, definitivamente esses procedimentos são o pior caminho.

Na crítica da crítica (a)histórica e absurda teoricamente, soa ainda mais curioso quando se sabe que o extinto PRC era um racha de linha stalinista do PC do B e que por uma década operara como força política na interna do PT dos anos ’80. Neste mesmo período, o PRC era o grande inimigo da então Convergência Socialista (CS), sigla anterior da ala majoritária que compôs a Frente Revolucionária e, depois, o PSTU, na década de ’90. Tarso e Canary coincidem em classificações de fraqueza teórica e (a)históricas, sendo que o irmão de Adelmo Genro (para vergonha da ala sadia do marxismo brasileiro), abusa dos neologismos, classificando, nos  microfones da mídia comercial, os militantes da FAG de “anarco-direitistas”. Tal absurdo, dito pelo governador – mas ampliado por Canary, pela via da aproximação nossa ao neoliberalismo!, se fosse dito numa instância política seria alvo de piadas. Como vivemos uma era de desinformação e calúnias, torna-se mais um “meme” de fala inócua e irresponsável, para não dizer politicamente criminosa, ao criminalizar uma organização política com 18 anos de existência e vida pública.

Voltando ao texto original, que é, em grande medida, alvo desta crítica, parece que o professor Arcary – por opinião própria ou pela desvantagem dos dias de informação – reiterou alguns dados incorretos em seu artigo. Seria completamente injusto dizer que o prof. Arcary reproduziu ipsis litteris os preconceitos de Canary ou do governador Tarso Genro. Em seu artigo suaviza em alguma medida a generalização e a pobreza teórica do artigo “Anarquismo e socialismo: o individual e o coletivo nas manifestações” do site do PSTU, talvez pelo fato de Arcary ser historiador por ofício e ter acessos a dados mais elementares da história do movimento operário que Canary, seja por incapacidade ou por preconceitos ideológicos, negou (entre eles), o combate histórico e permanente dos anarquistas ao fascismo e ao liberalismo.

O núcleo duro da crítica do PSTU foi então “minimizado” por Arcary, pois já não eram todos os anarquistas, mas “alguns pequenos núcleos de inspiração anarquistas” que insistem “na divisão do movimento querendo impor pela força dos gritos sua ideologia”. Perguntamos sinceramente se participamos dos mesmos atos, pois os gritos de “sem partido” e as agressões, pelo menos no Rio de Janeiro e na imensa maioria dos casos de São Paulo, vieram de pessoas com bandeiras do Brasil. Não cremos ser necessário dizer, que este não é um símbolo anarquista.

Apesar dos indícios elementares de abertura para o diálogo contidos no texto do prof. Arcary, com os quais temos concordância, por ser este o primeiro passo para quebrar os estereótipos políticos, é necessário elucidar para verdade dos fatos todas as informações veiculadas. Primeiramente, concordamos com a opinião da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ), integrante da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB), que diz repudiar “as agressões aos militantes de esquerda, partidos políticos e movimentos populares” e quaisquer atitudes “fascistóides” venham ela de onde vierem. Subscrevemos também a nota do Movimento Passe Livre de São Paulo, que diz ser “um movimento apartidário, não antipartidário” e repudia “os atos de violência direcionados a essas organizações durante a manifestação de hoje, da mesma maneira que repudiamos a violência policial”. O MPL muito oportunamente afirma que “desde os primeiros protestos, essas organizações tomaram parte na mobilização. Oportunismo é tentar excluí-las da luta que construímos juntos”. Mas não podemos aceitar que informações inverídicas sejam tomadas como “letra da lei”. Parece que até mesmo o PSTU, costumeiramente virulento em seus ataques aos anarquistas, teve de finalmente reconhecer o oposto em seu site. Cabe dizer que tal reconhecimento veio depois de um intenso trabalho dos anarquistas para refutar tais inverdades. Os companheiros devem revisar suas táticas para o bem da unidade na luta. Pois, na democracia operária do trotskismo – ao menos do morenismo – somos culpados até provar o contrário. Tivemos de “provar” o óbvio, que os inimigos não eram os libertários, mas neonazistas e infiltrados da polícia que “investem contra ativistas”.

Infelizmente, os militantes deste partido – ou ao menos, suas lideranças públicas – tiveram práticas de tipo expurgo público. Por isso, a verdade factual pode virar um elemento secundário quando formulam suas análises, pois elas carregam em seu bojo preconceitos teóricos e históricos instituídos. Há também dois discursos, convenientes de acordo com o contexto. Se o professor Arcary, que por sinal também é integrante do PSTU, faz a divisão entre anarquistas “honestos” e os que supostamente atacavam as bandeiras de seu partido (os desonestos), o boletim estadual do PSTU do Rio de Janeiro distribuído na plenária da Frente de Luta contra o Aumento da Passagem no dia 25/06/13 reafirmou a calúnia, desmentida inclusive em seu próprio site, de que foram os anarquistas os responsáveis junto com os fascistas a atacar suas bandeiras. Se no site foram os fascistas, nas plenárias políticas foram os fascistas, os policiais infiltrados junto com grupos anarquistas! Uma nítida tentativa de neutralizar o setor libertário, seja o identificado claramente em organizações políticas anarquistas ou a juventude que não concorda com suas práticas políticas vanguardistas e que não necessariamente se alinham ao recente “ufanismo” estimulado pela direita.

Até os jornais da imprensa burguesa noticiavam o que já era óbvio para os militantes anarquistas, que os ataques aos partidos era parte de uma articulação da extrema-direta. Extrema-direita que, se hoje ataca especificamente os partidos de esquerda, já incomoda os libertários desde os anos 80 e 90, excluindo as experiências históricas anteriores, quando os anarquistas efetivamente construíram com outros setores frentes antifascistas em comum.

Temos, diante deste cenário, de ensaiar passos de crítica e autocrítica. Muito do sentimento antipartido foi fomentado por práticas históricas da esquerda tradicional, e nisso, o trotskismo também tem suas responsabilidades. Vejamos o que viemos afirmando em documentos e comunicados anteriores:

“Limites como a prioridade da esquerda institucional em disputar aparatos sindicais e estudantis em detrimento do fortalecimento das bases. Limites de uma prática aparelhista e instrumental com os movimentos sociais, (…) a falta de inserção social de grande parte da esquerda com os desempregados/as, na favela, na juventude pobre e precarizada”. (FARJ, Breve análise sobre os últimos acontecimentos e as mobilizações sociais no Brasil e propostas socialistas libertárias para a luta).

Tudo isso gerou uma repulsa aos partidos políticos que hoje é canalizada em grande medida pela direita. O anarquismo também tem de ser autocrítico, e a corrente especifista, que longe de representar a totalidade do que “se chama por lugar comum de movimento anarquista” (FAG, Lutar contra a Tarifa até que vença a vontade das ruas!), vem fazendo isto com todos os seus limites. O anarquismo, e agora falamos de maneira muito mais ampla, não pode admitir confusões, neste momento crítico, em torno de sua ideologia política; o classismo, a necessidade da organização política, o trabalho de base e a responsabilidade e disciplina coletiva (Dielo Trouda, Plataforma dos Comunistas Libertários) sempre fizeram parte de sua valorosa história, representada por muitos militantes abnegados em diversas partes do país. Vemos com bons olhos e grande simpatia aqueles que hoje têm como referencial, mesmo que difuso, o setor libertário do socialismo (anarquismo). O anarquismo, assim como marxismo, também tem correntes e debates políticos fundamentais, nem sempre conciliáveis. Se há um setor (francamente minoritário em todo este ascenso de massas e na história do anarquismo, diga-se de passagem) que se reivindica anarquista sob balizas individualistas ou antiorganizacionistas, mesmo mantendo o respeito pelas posições teóricas distintas das que defendemos, consideramos totalmente incorreto afirmar que o anarquismo em sua maioria endosse ou se alinhe a esta posição. Todo indivíduo ou organização que reproduz uma caricatura burguesa sobre o anarquismo presta um desserviço à causa. Não os consideramos “inimigos”, nem “fascistas”, mas companheiros que, em muitos casos, desconhecem completamente os fundamentos teóricos e a prática histórica dos anarquistas.

Devemos também ter generosidade e paciência para com aqueles que hoje chegam e se aproximam de nossas fileiras. A luta é pedagógica e formativa para todos nós. E acima de tudo, devemos tratar as outras correntes políticas com respeito e sem estereótipos previamente (de)formados. Façamos o mesmo com o trotskismo e outras correntes do socialismo. Neste sentido, sem rifar nossos princípios, nós anarquistas estaremos, como sempre estivemos, ao lado das bandeiras vermelhas dos trabalhadores, sejam elas de partidos políticos, movimentos sociais ou entidades de classe. Nossas bandeiras só foram abaixadas pela força da reação e do autoritarismo. Esse foi o caso na Rússia e Ucrânia em 1919/21, quando os anarquistas foram esmagados pelo Exército Vermelho sob comando de Trótsky; da Bulgária, de 20 a 40, onde fomos massacrados pelos fascistas e depois pelos stalinistas (inclusive sendo enviados para campos de concentração); na Coréia, onde fomos esmagados pelos comunistas; no Estados Unidos, onde fomos perseguidos pelo Estado Liberal e capitalista norte-americano (com destaque para o caso Sacco e Vanzetti), na ditadura civil-militar Uruguaia e Argentina, que perseguiu, nas décadas de 60 e 70, as bandeiras negras de operários e anarquistas, para não nos prolongar em variados outros exemplos que exigiram mais espaço.

O que exigimos é respeito e, para isso, um debate franco é o melhor caminho que podemos trilhar. Sem ignorar nossos princípios ideológicos e as experiências históricas relevantes, nas quais cerramos fileiras com outras tradições da esquerda ou fomos traídos, o anarquismo tem um papel importante a cumprir no conjunto mais amplo do socialismo. Continuaremos a trabalhar sem sectarismo para auto-organizar a classe trabalhadora e os/as oprimidos/as, mas exigimos que tratem as bandeiras rubro-negras e o anarquismo como parte do que sempre foram, o setor libertário do socialismo.

* Historiador e professor de História.
** Cientista Político e professor de Relações Internacionais.
*** Editor e pesquisador.

Referências

ARCARY, Valério. Não deixem abaixar as bandeiras vermelhas. Disponível em http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1533 .

CANARY, Henrique. Setor de Juventude do PSTU. Anarquismo e Socialismo: o individual e o coletivo nas mobilizações de massa. Disponível em http://www.pstu.org.br/node/19465.

CATALLO, Pedro. Infâmia Bolchevista. Ação Direta, Rio de Janeiro, 30/11/1946, n0 26, p. 01

DIELO TROUDA, Plataforma dos Comunistas Libertários. Disponível em http://nestormakhno.info/portuguese/platform2/org_plat.htm .

FAG, Lutar contra a tarifa até que vença a vontade das ruas! Disponível em http://pt.scribd.com/doc/134038977/OPINIAO-Luta-transporte-2 .

FAG, O Enredo de uma farsa! A tentativa de criminalização da Federação Anarquista Gaúcha. Disponível em http://batalhadavarzea.blogspot.com.br/2013/06/o-enredo-de-uma-farsa-tentativa-de.html .

FARJ, Breve análise sobre os últimos acontecimentos e as mobilizações sociais no Brasil e propostas socialistas libertárias para a luta. Disponível em http://anarquismorj.wordpress.com/2013/06/25/breve-analise-sobre-os-ultimos-acontecimentos/

PSTU, Lutemos Juntos contra os governos. Disponível em http://www.pstu.org.br/node/19475

PSTU, Sobre as bandeiras do PSTU nas manifestações e os anarquistas. Disponível em http://www.pstu.org.br/node/19514

Artigo publicado originalmente em: http://estrategiaeanalise.com.br//deixemos-todas-as-bandeiras-vermelhas-levantadas…-mas-as-bandeiras-rubro-negras-exigem-respeito,6a5fb099b6a0519ef035f4a7c5f1da9a+01.html