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[CAB] Do luto a luta: Viva o 1° de Maio, dia de luta das trabalhadoras e trabalhadores!

Não é de hoje que Anarquistas se deparam com a encruzilhada que faz atravessar duas expressões que simbolizam – inclusive nas cores de nossa bandeira – a corrente Libertária do Socialismo: A Luta e o luto!

Na data de 1º de maio essas expressões ganham significado materializado nas lutas por direitos e no luto por aqueles que se tornaram os “Mártires de Chicago”. Nunca é demais fazer memória àqueles que entregaram suas vidas para uma luta que representava muito mais que “às 8 horas de trabalho diário”… Aquela era uma luta que carregava os anseios de socialismo e liberdade de toda uma classe, composta por mulheres e homens, das quais somos herdeiros e herdeiras. Esse é um fato que, muito antes de qualquer distinção, nos convoca a compromissos e responsabilidades que não podemos nos furtar.

Vivemos um momento de grandes e graves ataques dirigidos pelas elites econômica/empresarial, judiciária e militar à nossa classe, as e aos oprimidos, as trabalhadoras e aos trabalhadores. Ataques materializados nos cortes de direitos sociais, na destruição dos serviços públicos, no cerceamento de liberdades públicas, no aumento do custo de vida e, sobretudo, através do recrudescimento da repressão sobre toda e qualquer forma de oposição e resistência, seja sobre movimentos sociais ou, direcionada diretamente a lutadores e lutadoras do povo. Convencionamos que neste momento estamos atravessando um “Estado Policial de Ajuste” fortemente marcado pela ação reacionária do judiciário e seus aparatos! Um Estado-policial que caminha junto a ação paramilitar e reacionária no campo e na cidade, materializado no assassinato de militantes de movimentos populares rurais, defensores de direitos humanos (como Marielle) e lideranças camponesas, quilombolas e comunitárias.

Sofremos igualmente o ataque voraz do capital-imperialismo estadunidense e sua ação de pilhagem que se intensificou particularmente no último período em toda a região latino-americana.  Assim como, observamos os ensaios de controle militar dos de baixo, promovidos pelo exército brasileiro e sua intervenção militar-federal no Rio de Janeiro, que desde o seu início colocava-se como um “laboratório” que poderia se estender a outros estados do país.

Além das reformas trabalhista e previdenciária, enfrentamos um cenário de precarização sem precedentes nas relações e nas condições de trabalho, viabilizadas pelas medidas de terceirização e flexibilização dos contratos de trabalho. A grande maioria dessas trabalhadoras e trabalhadores terceirizados enfrenta uma realidade cruel de jornadas de trabalho estafantes, de ausência de equipamentos de proteção individual para evitar acidentes de trabalho e de salários extremamente baixos e muitas vezes pagos de forma parcelada, quando não atrasados por meses.

Tem direitos como férias e 13º salário relativizado e muitas vezes não pagos. Enfrentam subcontratações de empresas fantasmas e de “sindicatos caça-níqueis” que muitas vezes são geridos pelas mesmas contratantes.

Tudo isso conforma um cenário que dificulta sua organização enquanto trabalhadores e trabalhadoras e, por sua vez, praticamente inviabiliza mobilizações que possam confrontar essa situação. Em nossa opinião, a esperança liberal e republicana na democracia burguesa e em seu circuito viciado eleitoral não deve pautar a luta dos/as de baixo. Os palanques eleitorais não são instrumentos de mobilização nem de acúmulo de força social contra a reação dos projetos autoritários. Acreditamos que é apenas fortalecendo um polo de resistência que envolva o conjunto dos movimentos popular e sindical, que conseguiremos, nas bases e nas ruas, derrotar o avanço reacionário e os ataques aos nossos direitos.

A luta e a resistência a essa realidade de destruição de direitos e de precarização das relações de trabalho passa pelos Sindicatos, instrumentos históricos de organização da nossa classe, pelos movimentos camponeses e comunitários. Participar e disputar os espaços de organização sindical e popular para que voltem a estar a serviço dos e das trabalhadoras/es é um dever que nós, enquanto Anarquistas Organizados, não renunciamos!

Apesar do diagnóstico de que os sindicatos estão, em sua maioria, tutelados pelos interesses escusos de partidos eleitorais que se manifestam no modo de agir das grandes centrais sindicais, que mais dificultam e freiam os processos de luta do que os favorecem, defendemos que esses espaços são fundamentais e não podem ser abandonados.

Muitos apontam, então que o problema do sindicalismo seria de “direção”. Mas essa leitura não atinge uma questão central que é o fomento de uma Cultura de Participação Política. Quando falamos de cultura estamos falando de hábitos e costumes, crenças e valores. Das práticas e do universo simbólico que dá significado a essas práticas. De algo que precisa ser fomentado e experienciado, não desmobilizado ou travado como tem ocorrido recorrentemente. Podemos então falar de uma Cultura Política de Participação sindical. A questão central é que a cultura sindical que foi mobilizada durante muitos anos afasta a participação direta (ação direta) em detrimento da “eleição de dirigentes salvadores”, ou até mesmo de filiação a grandes “centrais sindicais” que supostamente teriam a “experiência necessária” para “conduzir e representar” os interesses dos e das trabalhadoras.

Portanto, a maneira mais lúcida de enfrentar a grave situação de retrocessos que vivemos passa pela construção cotidiana dessa Cultura de Participação Política desde os locais onde estamos inseridos que no caso dos e das trabalhadoras e trabalhadores, começa no local de trabalho e ganha expressão de classe no Sindicato. Em um cenário que aponta para o recrudescimento repressivo especialmente sobre a parcela “de baixo” da população, é fundamental retomar valores que estavam presentes naquele 1º de maio de 1886!

A luta e a resistência ao “Estado Policial de Ajuste” passam pelo reconhecimento, valorização e incorporação das experiências da classe trabalhadora tanto do passado quanto do presente. Nesse 1º de maio também é fundamental trazer para as lutas do presente o referencial das Organizações Operárias brasileiras do inicio do século XX, simbolizadas pelo sindicalismo de intenção revolucionária, na histórica Greve Geral de 1917 e pela insurreição geral com forte participação anarquista de 1918 que este ano completa 100 anos. Entre muitos exemplos exitosos, é fundamental reconhecer e aprender com as experiências recentes das greves de operários da construção, da educação, dos transportes, de municipários e municipárias de diferentes localidades do país. Fundamental reconhecer os recentes conflitos e greves envolvendo os setores de serviços onde há grande concentração de trabalhadores e trabalhadoras terceirizadas.

Nesse 1º de Maio saudamos e fazemos memória às experiências históricas de ontem e de hoje! Erguemos nossa voz para afirmar que é somente através da LUTA que garantiremos a manutenção e ampliação de direitos e liberdades que são fruto de anos de Luta e de Luto do conjunto dos e das trabalhadoras e trabalhadores!

1º de Maio é LUTA!

Contra o ajuste e a repressão!

Abaixo o Estado Policial de Ajuste!

Viva à memória dos Mártires de Chicago!

Viva à LUTA das trabalhadoras e dos trabalhadores!

BARRAR AS REFORMAS NAS RUAS E CONSTRUIR PODER POPULAR!

[FAG] Carta de opinião da FAG | A saída não vem de cima!

Retirado de:                                                                                                                https://federacaoanarquistagaucha.wordpress.com/2015/12/17/carta-de-opiniao-da-fag-a-saida-nao-vem-de-cima/

dilma-e-cunha

A situação política e econômica do país encontra-se num momento delicado. A aceitação do pedido de Impeachment contra Dilma Rousseff (PT) por parte do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) abre margem para diferentes e divergentes posições. A polarização entre os que defendem o governo Dilma Rousseff e os que defendem seu Impeachment precisa ser questionada. E seu questionamento deve ser feito através da afirmação e da construção de uma saída alternativa, de uma terceira posição, própria e característica dos de baixo, daqueles e daquelas que independente do desenrolar dos fatos, terão seus direitos sociais, suas condições de trabalho e a dignidade de suas vidas destroçadas e dificultadas ainda mais.

A saída não vem de cima!

Desde a eleição de Dilma Rousseff à presidência da república, e mesmo antes, as classes oprimidas vêm sofrendo duras penas com a retirada de direitos trabalhistas, ajuste fiscal que corta verbas da saúde e educação e com projetos de austeridade que encarecem o custo de vida. Tudo ao contrário do que prometia Dilma em sua campanha eleitoral. Na verdade, Dilma se elegeu com margem apertada com o verso de que não tocaria nos direitos dos trabalhadores. Imediatamente aplica as receitas de ajuste fiscal defendidas pelo seu adversário Aécio Neves (PSDB). Um verdadeiro estelionato eleitoral que indica, mais uma vez, o caráter nefasto da democracia representativa burguesa e a falsa representação dos interesses populares.

Mas os setores da direita na oposição, representantes diretos das ideias conservadoras e neoliberais de pura cepa, não contentes com o modo petista-peemedebista de governar (através do pacto de classes que dá pouco aos pobres para dar muito aos ricos)  decidiram que é hora de governar diretamente, descartando de uma vez por todas o PT junto com o verniz social e popular que lhe é atribuído. Na visão de uma fração das classes dominantes, o PT já não serve a seus interesses, mesmo que essa seja uma reclamação de barriga cheia já que em mais de 12 anos de governo Petista lucraram e se privilegiaram como nunca.

Essa briga de cachorro grande, de vizinhos de um mesmo condomínio é, assim, uma luta feroz entre as elites dirigentes pela máquina do poder político para aprofundar ainda mais os ataques aos direitos dos de baixo que já vem pela mão do PT. Não se trata de luta de classes, em que os interesses dos trabalhadores são defendidos contra os interesses dos patrões. Essa polarização entre “impeachment e governo” não representa os nossos interesses enquanto oprimidas/os. A luta de classes não vai sair de cena para deixar lugar a essa falsa polarização.

A guerra de nervos do impeachment e a democracia que deve ser defendida

As investigações das várias operações em curso (Zelotes, Lava Jato, etc.) indicam o que há tempos nós anarquistas da FAG procuramos afimar: a corrupção é algo estrutural e sistêmico que atinge a todos, entre partidos da ordem, bancos, empresários e patronais. Aliado a essa corrupção sistêmica, se encontra um modo suprapartidário de governar que não toca nos privilégios das oligarquias, no poder dos grupos econômicos e financeiros e no regime ideológico das práticas institucionais. Quem governa pelo sistema, pelo sistema é governado! Nesse sistema, todos são sócios na corrupção e na impunidade. Uma mão lava a outra. Todos têm sua vez. Quem não pactua com esse esquema não governa.

É nesses termos que encaramos o corrupto Eduardo Cunha (PMDB), investigado por corrupção e lavagem de dinheiro, assim como encaramos os corruptos de todos os partidos da ordem em conluio com os patrões e os banqueiros.

Portanto, a democracia que aí está, não foi criada para garantir os interesses e as vontades do povo. Seu funcionamento expressa muito bem isso em cada estelionato eleitoral, em cada manobra regimental, em cada lobby patronal, no racismo institucional cotidiano que condena sem julgamento a juventude negra das periferias, nos conchavos de toda ordem, nas redes subterrâneas que roubam e desviam recursos públicos e em cada fuzil que diariamente extermina o povo negro e indígena em todo o Brasil. A lista não termina aqui.

O impeachment é, portanto, uma carta a mais no jogo que vai mudar algumas peças para manter tudo como está. Pois as regras do jogo não vão ser alteradas e o Estado Democrático de Direito, que é mais de direito para alguns do que pra todos, vai continuar reproduzindo privilégios e práticas que excluem os oprimidos de toda e qualquer decisão fundamental sobre nossas vidas. Pois o núcleo duro da dominação capitalista continuará intacto. Porque os mais de 13 anos de governo “progressista” não representaram a vontade de mudanças estruturais e sim uma variável de administração, um modo de operar a máquina que ao final não põe em causa as suas engrenagens, não questionam as suas regras de funcionamento.

A democracia que deve ser defendida nesse momento, na nossa visão, é a democracia direta e de base dos lutadores sociais, das assembléias populares, dos conselhos e plebiscitos na vida pública, nas ocupações de escola e nas lutas sociais que defendem direitos e que na prática exercitam um modo próprio de gerir seus interesses, de tomar decisões sobre os assuntos que nos afetam diretamente, de fazer política desde baixo enquanto povo oprimido. Será pela luta popular e sem recuar um centímetro que defenderemos os direitos sociais e as liberdades de reunião, associação e de manifestação, buscando ampliá-las e aprofundá-las para além da ilusão oferecida pela democracia representativa. Não cederemos um passo para a judicialização da política pois queremos um Povo Forte que faça da política a gestão direta dos bens comuns.

O que fazer então nesse momento?

Nós anarquistas da FAG nos posicionamos por uma terceira posição que afirma a independência de classe dos trabalhadores contra o ajuste econômico, a democracia direta e de base em oposição ao sistema corrupto da representação da política burguesa e a generalização das lutas pelas ruas, greves e ocupações fora dos controles burocráticos e dos cálculos eleitoreiros. Nem com o bando reacionário do impeachment e do congresso e tampouco com o governismo ajoelhado que passa a faca na carne do povo em conluio com a patronal e o sistema financeiro.

ocupaA ocupação das escolas estaduais pelos estudantes secundaristas em São Paulo contra o projeto de reorganização escolar que fez recuar o governo Geraldo Alckmin (PSDB) suspendendo a reforma que previa o fechamento de 94 escolas é para nós um exemplo do que deve ser feito nesse momento. Talvez seja, depois das reduções das tarifas de ônibus que provocaram as jornadas de junho de 2013, a maior conquista da luta social contra o ajuste nesta conjuntura. Uma conquista parcial certamente, mas que gerou moral rebelde de peleia, calçada em outras práticas, que produz outros sentidos e que não se deixa capturar pela polarização das elites. Não há saída no curto prazo que passe por fora da luta direta dos oprimidos. Buscar atalhos nesse momento é cair novamente na armadilha do pragmatismo que não vai levar a lugar nenhum. A saída não vem de cima, da política feita por profissionais, mas deve vir de baixo, da política feita com ação direta e democracia de base por parte de todas as classes oprimidas.

 Outra ideologia, outra cultura política, que faça caminho pra nova geração de lutas rebeldes que defende seu trabalho, território, direitos sociais, saúde, educação e radicaliza a democracia pela auto-organização. Que não joga mais sua sorte e suas esperanças no esquema trapaceiro dos partidos da ordem e semeia núcleos de poder popular como fatores de resistência.

A radicalidade de uma alternativa está no plano das práticas e a produção de força social de uma resistência combativa vem de baixo, dos lugares vitais do cotidiano de trabalho, estudo e comunidade. A unidade que pode forjar uma terceira posição tem que pulsar dessas dinâmicas e da união dos organismos de democracia de base das classes oprimidas. Para nós, estes são os fatores que podem mudar a correlação de forçar nessa etapa.

Por uma terceira posição: independência de classe e unidade pelas lutas!

Nem com o bando reacionário do impeachment e do congresso e tampouco com o governismo ajoelhado que passa a faca na carne do povo em conluio com a patronal e o sistema financeiro.

Democracia direta e de base com Assembléias, Conselhos e Plebiscistos na vida pública!

 Generalizar as lutas para mudar a correlação de forças!

 Federação Anarquista Gaúcha – FAG

[FARJ] A Organização Específica Anarquista…

…como consequência do acúmulo organizativo e vontade de construção do poder popular

retirado de: http://www.anarkismo.net/article/23100

A organização específica anarquista como consequência do acúmulo organizativo e vontade de construção do poder popular. Texto teórico da FARJ apresentado no debate sobre especifismo e poder popular do I CONCAB.

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Malatesta identifica a necessidade da luta econômica e política como dois dos elementos necessários para o avanço rumo a emancipação do povo oprimido. Quanto às lutas econômicas, considerando nosso contexto atual, podemos entender também as diferentes mobilizações e reivindicações, não apenas no âmbito das relações de trabalho, mas também aquelas que abarcam as questões que tocam as demais necessidades do povo. Desemprego, moradia, saneamento, saúde, educação, cultura, entre outros, podem ser entendidos também como conseqüências de um sistema organizado, como é o capitalismo, no sentido de explorar e dominar o povo para garantir suas necessidades econômicas e políticas e perpetuar o estado atual das coisas.

Assim, partindo de Malatesta, entendemos esta luta pelas demandas cotidianas, como um dos elementos de extrema importância na construção do poder popular, e consequentemente de um sujeito revolucionário que não é dado a priori, mas também é construído na luta diária. Essa luta se traduz nos locais de moradia, de trabalho, e no caso da luta camponesa, no espaço onde as duas situações podem se encontrar.

Mas a luta cotidiana, ou econômica, também tem seus limites. “Então a força dos trabalhadores se choca com a dos patrões, assim como contra o governo, que é seu órgão político e armado de defesa. Então a luta econômica se torna política.”

Podemos entender deste modo, a organização política como uma conseqüência, e uma necessidade do avanço desta luta cotidiana. A organização política anarquista, que aqui representamos com nossas organizações irmãs, não substitui a luta popular, mas ajuda a potencializá-la. Não é uma organização de eleitos auto-proclamados, mas pretende como minoria ativa, apoiar a auto-organização da classe sob uma perspectiva revolucionária e ajudar a construir um projeto de poder popular que não forme novos dominadores em seu movimento.

A construção do poder popular passa por esta dinâmica. A opção, por parte do povo, de um projeto de organização de classe autônomo, organizando-se diante de um sistema muito bem estruturado para nos dominar e explorar, prova, nas lutas cotidianas, ser uma opção viável de libertação.

“Os trabalhadores não poderão jamais se emancipar enquanto não encontrarem na união a força moral, a força econômica e a força física necessárias para desmantelar a força organizada dos opressores”. Essas palavras malatestianas articulam um tripé impossível de ser desfeito aos que pretendem a transformação radical da sociedade.

O acúmulo organizativo que vamos construindo, passo a passo, deve ser generoso em suas perspectivas. Não se deve limitar-se apenas à solução das necessidades materiais. Sabemos que os elementos simbólicos, culturais e religiosos transpassam todas estas questões materiais. Pensar a solução dessas demandas sem levar em conta os laços que constituem todo um “tecido social”, destroçado pelo capitalismo, é limitar as possibilidades do nosso projeto. Assim como esperar que o sistema se desestruture pacificamente, sem a mobilização e a luta avançada da classe, é uma ingenuidade desfeita pela análise histórica de matriz libertária.

A organização política influencia e é influenciada pelo povo e suas organizações de base.

“À vontade de crer, oponho a vontade de saber, que deixa aberto diante de nós o campo ilimitado da pesquisa e do descobrimento.” Malatesta

Podemos entender que, muito mais do que certezas, ou aplicação de fórmulas, a construção do poder popular implica em saber ouvir e conhecer não só os problemas e as demandas do local de atuação da militância, mas reconhecer, valorizar e estimular as iniciativas populares de organização. Querer antecipar a consciência libertária da classe com ações e formas forçadas, deslocadas de certos contextos, é sinal de impaciência política e compromete um real acúmulo coletivo. É cair no erro de atuar sempre ideologicamente, reproduzindo o que seria uma “forma revolucionária”, em vez de trabalhar com as ferramentas teóricas construídas e pautadas nos princípios ideológicos. Prática que acaba levando ao sectarismo ou à intolerância que logo classifica de “alienados” aqueles que não pensam e agem daquela “forma” que se crê ser a mais correta.

Considerar que a organização política já possui todas as respostas antecipadamente é reproduzir erros antigos de orientações ideológicas exógenas ao anarquismo. A organização política não está pronta. Tem de preferir dar dois passos com a classe, do que mil isolada entre seus iguais. Esta prática deve ser compreendida como um exercício permanente de organização, algo que os sindicalistas revolucionários e os anarquistas chamavam de “ginástica revolucionária”. Este movimento, que permanece como um projeto em construção, edifica-se junto às classe que deseja fortalecer, e não isolada, em suas próprias reflexões. Aprender é escutar. Mas não basta simplesmente estar nos movimentos e viver à reboque deles; é preciso estar lá com um programa e uma estratégia bem definidas, para não desperdiçar e fragmentar as energias militantes.

É na base que construímos o federalismo de matriz libertária, valorizando a delegação enquanto responsabilidade coletiva. Nossos esforços militantes devem ser medidos de acordo com este parâmetro. Pois o poder popular é aquele que se enraiza de baixo para cima, “pela base e à esquerda”, como dizem os zapatistas. Neste sentido, a atuação de nossos/as militantes no sindicalismo, no movimento estudantil, popular e camponês deve procurar construir a casa pela sua fundação, sem ignorar que a complexidade das lutas implica na mediação da política com a realidade.

Por um estilo militante de trabalho social e político

Entendido como o modo específico de realização da política aplicada pelo/a militante, e que se traduz diretamente em sua relação com o trabalho e a inserção social, o estilo militante é a coerência do/a militante e do conjunto da militância com os princípios, métodos e a linha política de uma organização. Sabemos que não há nenhum/a militante que reúna todas as qualidades exigidas por uma organização, e que nesta convivem vários temperamentos e singularidades. Mas há elementos básicos que são necessários. Espera-se que o militante seja um bom organizador, que tenha responsabilidade coletiva e comprometimento com as tarefas exigidas (internas – da organização, e externas – dos movimentos sociais). Que seja ético, camarada, que escute os seus/suas companheiros/as de luta e que, nos trabalhos sociais, principalmente, saiba que ele/a é o “rosto” da organização. Que não se comporte autoritariamente ou de forma vaidosa/excêntrica, e que lide com o povo e com seus companheiros com respeito e sinceridade. Que fale a linguagem que o povo compreenda. Que não faça “terra arrasada” nas assembléias e atividades públicas, como se estivesse num combate de “foices” ou esgrima, onde se deve abater o adversário ao invés de contribuir com o coletivo.

Se a utopia do socialismo libertário que queremos ajudar a forjar se faz com uma longa caminhada, os valores que criam os novos sujeitos constituem-se no presente e são inegociáveis. Espera-se que os/as militantes não reproduzam no seu cotidiano formas de opressão – mesmo que sutis –, tampouco de domínio e exploração para com os outros/as companheiros/as de luta e trabalhadores. Sabemos o quão difícil é abandonar valores próprios da cultura burguesa (alguns anteriores a esta) em que vivemos, e fomos cotidianamente formatados (sexismo, machismo, homofobia, competição, racismo, preconceito, etc). Este não é um processo simples, nem imediato, e tampouco se tem a ilusão que uma transformação total e absoluta é possível, como se houvesse um interruptor disponível que possamos acionar. Sabemos que estamos falando de pessoas de carne e osso, mas é preciso sempre pautar a ligação estreita que pretendemos dar, entre a utopia e a ética.

A organização requer apenas o mínimo de autocrítica e lucidez, ao compreender as suscetibilidades que nos formam sob o sistema de dominação que vivemos e a abertura do militante para sua conversão ao projeto libertário. Um programa libertário muito bem formulado dentro dos movimentos e espaços sociais que atuamos pode naufragar completamente se nos comportamos da mesma forma que nossos inimigos de classe ou reproduzimos comportamentos políticos e sociais que condenamos no outro. Não se convence ninguém sem exemplos ou comportamentos aproximados e apropriados à nossa ética libertária, que deve estar refletida em nossas práticas. O ditado popular, identificando a contradição usual entre discurso e ação no seio da sociedade burguesa, já o diz: “Uma ação vale mais do que mil palavras”. Não importa a capacidade de uma organização traduzir racionalmente seus projetos e programas políticos (panfletos, livros, discursos), se seus militantes não conseguem convencer pelos exemplos, sua adesão e coerência ética ao projeto político que pretendem realizar. Obviamente isto não é um projeto simples, mas é importante que seja um horizonte dos que pretendem interferir politicamente na realidade.

A importância da vontade, dos elementos subjetivos e da intenção política no trabalho de base
“O Anarquismo como método para realizar a anarquia por meio da liberdade.” Malatesta

No trabalho cotidiano, ao estimular a organização popular, pode-se identificar uma dimensão mais objetiva da nossa política, que está relacionada às propostas concretas e a um método de se organizar autônomo e independente. Há no entanto uma dimensão subjetiva, intuitiva, que costura todo o trabalho social que fazemos e reforça a importância política de se estar organizado. Esta dimensão reforça e constrói aspectos identitários. Ideal Peres, num dos momentos de rearticulação dos militantes anarquistas cariocas dizia-nos que era preciso “explodir bombas nos corações dos trabalhadores”. Referia-se à necessidade de compartilhar os sentidos, signos e significados da utopia no próprio cotidiano militante e assim transformar, pelas conquistas sociais e políticas, mentes e corações.

Deste modo, nossa vontade de transformação e nossas intenções conformam um imaginário social e político de matriz revolucionária. Pensar nesse imaginário apenas como um modelo acabado e definido (uma ideologia mais ou menos consciente) já prescrito nos livros e brochuras é ignorar toda uma tradição popular que se assenta na resistência histórica da classe. Seguindo a analogia de Neno Vasco, se a ideologia anarquista se pretende o “fermento do bolo” e já o sabemos que a vontade de comer (necessidades materiais) está posta na ordem (capitalista) do dia, lembremos que a “feitura do bolo” é atravessada por práticas de resistência que não podem ser reduzidas apenas ao algoritmo de uma receita. Esses elementos imaginários da classe (símbolos, significados, ícones, representações) estão arraigados na cultura popular e são manejados eficientemente por nossos inimigos, que nesse sentido também propõe e mobilizam ideologicamente alguns milhares ou milhões. Longe de reduzir as questões da transformação radical às oposições dualistas já consagradas pelos debates clássicos (subjetivo x objetivo, material x ideal, etc.) do campo do socialismo, propomos articular esses três elementos. À partir da luta e da auto-organização da classe para resolução de suas necessidades materiais, nos esforçarmos para enraizar a ideologia política operacionalizada pela organização específica anarquista com os elementos imaginários da resistência da classe. Uma tarefa gigantesca, que só pode colher seus frutos, com o esforço coletivo e consciente dos que acreditam na transformação social por uma matriz libertária.

* Texto elaborado em ocasião do Congresso de Fundação da Coordenação Anarquista Brasileira.

[CAB] Programa de Lutas para Construir um Povo Forte no Próximo Período

retirado de: http://www.anarkismo.net/article/23096

Programa mínimo aprovado no I CONCAB.

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É verdade que o socialismo e a liberdade, pelos quais lutamos, não estão colocados logo ali, no amanhã. Mas também é certo que o que fazemos todos os dias, e como o fazemos, tem relação direta com onde queremos chegar. Estar juntos com os que lutam, na defesa e nas conquistas, construindo soluções parciais e concretas é parte desse processo. O que vai definir uma alternativa é o tipo de acúmulo, como ela se organiza e se constitui como força social transformadora. Só um povo forte, unido pela solidariedade de classe e combatendo pela ação direta, pode radicalizar a luta de classes e produzir uma mudança social que abra horizonte para ensaios revolucionários na realidade.

Somos partidários de um programa de lutas para construir um povo forte, que não troque sua independência de classe por cargos, favores ou razões governistas. Como pequena, mas resoluta força de combate do lado dos oprimidos, continuaremos como sempre nas lutas que vêm de baixo, fora do governo e das colaborações com os patrões. E como pauta para essa conjuntura que entramos, queremos construir com quem luta por soluções práticas, mas sem perder nossa intenção libertária e socialista, com o sentimento de que nada podemos esperar que não seja do próprio povo.

Trazemos a seguir nosso programa mínimo, que apresenta os elementos reivindicativos em torno dos quais pretendemos atuar no presente, de maneira a permitir um avanço rumo a nosso projeto revolucionário.

***

Trabalho, salário digno e previdência

Reivindicação da redução da jornada de trabalho sem perdas salariais e trabalho digno com direitos sociais. Contra a farsa da meritocracia e o engodo da produtividade. Salário mínimo de acordo com as necessidades básicas previstas na constituição e contra o aumento do custo de vida.

Defesa de uma previdência pública com reajuste digno para os aposentados e contra o mecanismo da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que desvia recursos da Seguridade Social para a dívida pública e falseia o déficit da previdência. Contra os mecanismos de privatização da previdência e a especulação financeira com os fundos de pensão.

Defesa do fortalecimento e da autonomia política das entidades de base dos trabalhadores e pela manutenção do direito a greve. Contra a fragmentação da representação sindical e a criminalização dos sindicatos.

Acompanhamento e solidariedade à luta dos trabalhadores da Europa e da América do Norte, posicionando-se contra os cortes nos direitos trabalhistas, em especial, as mudanças na previdência.

Educação

Aumento dos investimentos na escola básica (creches, educação infantil, ensino fundamental e médio) e combate aos problemas de falta de estrutura (merenda escolar, bibliotecas adequadas e outros recursos) e à precarização do trabalho na educação. Contra o fechamento das escolas urbanas e rurais.

Combate às políticas de mercado aplicadas pelo Plano Nacional de Educação (PNE), voltadas para a precarização e a privatização da educação pública.

Participação das comunidades na gestão escolar e a ampliação da educação superior, técnica e tecnológica, de caráter público, gratuito e sem precarizacao. Ampliação e implementação de políticas efetivas de assistência estudantil que garantam o acesso e a permanência. Fim do socorro financeiro com dinheiro público destinado às universidades particulares através do Programa Universidade para Todos (PROUNI) e do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), e que esses recursos sejam aplicados na ampliação qualitativa das vagas nas universidades públicas.

Produção de ciência e tecnologia com controle social. Ampliação de cursos superiores em parceria com os movimentos sociais com controle político e pedagógico dos próprios movimentos.

Saúde

Aplicação das verbas obrigatórias na saúde pela União, estados e municípios.

Ampliação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Enfrentamento das empresas privadas, fundações e Organizações Sociais (OS) nas áreas da saúde.

6% do PIB à saúde pública sem intermediação privada.

Reforma urbana, direito a cidade e plano de moradia

Contra o regime privatista das Parcerias Público-Privadas e a concessão de créditos do BNDES para os grandes capitais, as obras do PAC e os megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, que promovem a segregação do espaço urbano.

Combate à especulação imobiliária e à usurpação privada do direito à cidade. Defesa da função social do solo urbano. Desapropriação de prédios e terrenos devolutos para programas de moradia popular que atendam os milhões de populares sem moradia própria, com planos de construção por sistema de mutirão, cooperativas e autogestão.

Contra os programas de “limpeza social” dos centros urbanos e os despejos realizados por razão dos megaempreendimentos e megaeventos esportivos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Defesa intransigente de uma política de transporte verdadeiramente público, gratuito e de qualidade, que garanta o direito à locomoção dos mais pobres e dos desempregados nas zonas urbanas e rurais. Rechaço à mercantilização do transporte, com gestão pública e participação popular.

Defesa de uma política que priorize o transporte coletivo em detrimento do individual, com incentivo dos meios alternativos.

Reforma agrária e combate ao agronegócio e às transnacionais

Reforma agrária contra o latifúndio e as monoculturas extensivas do agronegócio e produção sem o uso de agrotóxicos e transgênicos, que envenenam os trabalhadores do campo e demais consumidores. Garantia de condições para efetivação da reforma agrária e limite da propriedade privada da terra.

Métodos de produção agroecológicos que priorizem a gestão popular da produção agrícola em harmonia com o meio ambiente. Controle das sementes pelos trabalhadores do campo: contra a propriedade e a patente das sementes por empresas do agronegócio.

Demarcação de territórios indígenas, quilombolas e apoio às comunidades pesqueiras e demais comunidades tradicionais.

Reforma tributária e ruptura com os agiotas da dívida pública

Rompimento com o mecanismo perverso da dívida pública, que paga altos juros para os agiotas do mercado financeiro e corta políticas públicas e gastos sociais para os pobres. Implementação de uma reforma tributária com taxação dos ricos e não dos pobres.

Ruptura com os agiotas da dívida pública, que consome quase metade do orçamento público, com maior investimento dessa verba na saúde e na educação.

Direitos humanos

Abertura efetiva dos arquivos da ditadura e condenação dos torturadores e mandatários dos crimes de Estado nesse período.

Contra a criminalização da pobreza e do protesto e pelo fim do extermínio de pobres. Pelo reconhecimento da dívida social com os povos negros e indígenas.

Fim da opressão nos presídios: contra a violência e tortura aos presidiários e contra a revista vexatória dos visitantes. Fim dos manicômios e do encarceramento de pessoas com transtornos mentais.

Fim da violência contra as mulheres e direito a elas para o atendimento público e ético no Sistema Único de Saúde (SUS) para o aborto. Combate ao machismo, à homofobia e defesa da livre orientação sexual e dos direitos da criança e do adolescente.

Democratização da comunicação e combate aos monopólios

Controle popular sobre o sistema de comunicação e fim dos monopólios da comunicação.

Comunicação popular e liberdade de expressão, incluindo direito à livre transmissão das rádios e TVs comunitárias. Contra a criminalização imposta pela ANATEL e a burocratização das outorgas.

Contra o cerceamento de liberdade e o controle de informações na internet.

Participação e protagonismo popular

Direito de convocação popular de plebiscitos e referendos deliberativos para as decisões estratégicas do país, efetivando-se diretamente, em questões como dívida pública, limite da propriedade e livre comércio.

Contra a repressão institucionalizada e a criminalização dos movimentos sociais e do protesto popular.

Fortalecimento da ação direta, da construção pela base e da ampla participação popular nos movimentos sociais.

Meio ambiente, petróleo e bens naturais a serviço do povo

Fim dos leilões da Petrobrás e anulação das privatizações. Modelo público para as reservas de petróleo do pré-sal, sem partilha com os capitais privados e com investimento das receitas em políticas públicas de trabalho, direitos sociais e moradia.

Decisão e controle popular das fontes e reservas energéticas. Contra políticas desenvolvimentistas que investem na construção de hidrelétricas implantadas de maneira autoritária e com conseqüências funestas para as populações e com graves impactos ambientais e sociais. Por um modelo energético a serviço do povo.

Contra o plano IIRSA e o saque aplicados por empreendimentos como os megaeventos, os megaportos e as hidrelétricas, em detrimento dos anseios populares.

Contra a privatização da água, do petróleo e dos bens naturais.

Anti-imperialismo e direito de autodeterminação dos povos

Retirada imediata das forças de ocupação brasileiras no Haiti.

Alerta permanente contra os golpes das oligarquias e do imperialismo sobre os países da América Latina, dando apoio resoluto aos processos de mudanças de bases populares que são experimentados ao longo do continente, independente da política de seus governos.

Denúncia contundente da militarização do continente, sobretudo a partir das bases militares na Colômbia e das políticas que criminalizam o protesto popular e as comunidades tradicionais.

Defesa do direito de resistência dos povos.

* Documento aprovado no I Congresso da Coordenação Anarquista Brasileira, Rio de Janeiro, 8, 9 e 10 de junho de 2012.